quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Zelaya e a aposta ousada de Lula


24/09/2009


A chegada de surpresa do presidente Manuel Zelaya a Tegucigalpa foi a resposta aos que se perguntavam o que mais se poderia fazer para pôr fim à suspensão forçada do Estado de Direito em Honduras depois que o usurpador Roberto Micheletti e os que o apoiam se mantiveram irredutíveis ante o emprego de todas as formas imagináveis de ação diplomática para fazê-los desistir.

A chegada repentina do líder constitucional à capital de seu país veio colocar em ridículo as forças militares e de segurança, incapazes de impedir o trânsito do homem mais procurado pelo regime. Fica assim marcado um dos últimos, ainda que indispensáveis, atributos de poder do governo de facto, qual seja a capacidade de demonstrar um controle efetivo do território.

Quando o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, José Miguel Insulza, disse sensatamente que não se podia "voltar à diplomacia das canhoneiras", poucos imaginavam que houvesse outra iniciativa à mão para derrubar por meios pacíficos a palhaçada golpista. Com certeza, se há uma definição de "pária", ela tem em Micheletti o exemplo máximo: nem Saddam Hussein, nem Coreia do Norte, nem talvez o regime genocida sudanês sofreram um bloqueio tão absoluto do acesso à ajuda das relações exteriores, do reconhecimento diplomático mesmo, como o que enfrentam os golpistas hondurenhos. E, no entanto, eles se obstinaram, há muitas semanas já, esperando que eleições realizadas em condições inconstitucionais lhes restituam a imunidade. Pois bem, Zelaya saudando da varanda da embaixada brasileira foi o safanão mais violento que receberam num momento em que a unanimidade internacional no repúdio corria o risco do desânimo que a falta de resultados sempre causa.

Os Estados Unidos haviam aumentado, há alguns dias apenas, a aposta antigolpista que vem fazendo (com hesitações nas quais se leem disputas burocráticas internas e a inércia da Guerra Fria) o presidente Barack Obama, ao suspender vistos dos procuradores do regime. Mas nada se compara à audácia que demonstrou um Brasil que, embora totalmente comprometido desde o início na condenação ao golpe, parecia estar esperando com impaciência que os próprios Estados Unidos agissem decisivamente dentro do que Brasília indicava respeitar como área de influência exclusiva da superpotência.

Pois bem (e esta é uma partida bem interessante que parece estar sendo jogada agora), a diplomacia do Itamaraty deixou ver ante os olhos arregalados do mundo que seu país está disposto a dar mostras de maioridade geopolítica em qualquer rincão da América Latina e do Caribe onde uma demonstração de poder possa provocar efeitos, em princípio, benévolos. Uma chave de leitura do que sucede nestas horas dramáticas e intensas em Tegucigalpa pode-se comparar à hospedagem oferecida a Zelaya à presença sul-americana na missão da ONU no Haiti.

A jogada brasileira, na qual já estão publicamente envolvidos o chanceler Celso Amorim e o próprio presidente Lula, e para a qual estão utilizando a caixa de ressonância da Assembléia Geral da ONU, em Nova York, deve ser vista à luz da inquietação provocada em Brasília pela remobilização da IV Frota dos Estados Unidos no Atlântico Sul e a presença desse país em bases militares colombianas. Convencidos de que esses movimentos se destinam a contrabalançar sua força como potência emergente, os brasileiros não deixarão passar a oportunidade de se projetar, reafirmando-a.

As condições para uma virada da situação em Tegucigalpa estão dadas. E, embora cooperem neste caso para o fim comum de devolver a democracia ao povo hondurenho, os termos da rivalidade hemisférica entre Washington e Brasília também estão.

Gabriel Puricelli é co-coordenador do Programa de Política Internacional do Laboratório de Políticas Públicas (LPP)

Tradução de http://www.operamundi.net/

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