domingo, 2 de junho de 2013

Torturadores: animais em circulação



Os que me conhecem bem sabem que não sou muito condescendente com a espécie a que pertenço. Para  mim, o ser humano ainda está bem distante de atingir a um estágio que efetivamente o distinga, no que realmente interessa,   dos chamados seres irracionais. Penso que, a despeito de todas as conquistas tecnológicas e materiais,  ainda nos situamos em uma espécie de Idade das Cavernas. A inveja, a perfídia, a calúnia, a traição, a violência, o egoísmo, o preconceito nos mínimos atos de cada dia, os  genocídios que se perpetram de forma  permanente,  as guerras sem sentido, enfim, todos os repetidos atos  de barbárie   cometidos diuturnamente no planeta não me permitem uma visão otimista, mas a constatação de que, mudando-se os tempos, os cenários e os atores, o enredo continua o mesmo.

O otimismo, admito, pode ser, em muitos casos, um componente  propulsor, um móvel que traz consigo o entusiasmo para novas conquistas e a esperança de que tudo venha a melhorar. Ele é importante em alguns momentos, mas será sempre uma atitude romântica, dissociada do real. As verdadeiras mudanças,  se vierem – e cada vez acho mais complicado isso – terão que vir do juízo crítico, da denúncia, do comprometimento com a luta pelas causas comuns a todos os homens, que envolvem a superação das injustiças e desigualdades.

Esse quase desabafo vem a propósito de tema muito debatido, mas que nunca é demais repisar, somando mais uma voz à de quantos ainda têm a capacidade de verdadeiramente revoltar-se. Quando leio um depoimento como o da cineasta Lúcia Murat que, jovem ainda, no aceso dos seus vinte e poucos anos,  por buscar  um mundo mais justo, teve a sua vida marcada pela vilania de outros seres ditos “humanos”, é difícil ficar eufórico com o apregoado desenvolvimento ou progresso da Humanidade.

Procure ler na íntegra o que ela narra, episódios que passam pela ação efetiva de sádicos animalizados, entre eles militares de alta patente e médicos, que ela claramente nomeia.  Procure ler sobre os espancamentos que sofreu, sobre os choques no pau de arara que envolviam uma “viagem”  pelos seios, pela vagina, pela boca. Procure conhecer  a moderníssima técnica de interrogatório que passava pelo “passeio” de baratas pelo corpo, introduzidas na vagina.   Procure saber a verdade.

Leia o depoimento da cineasta, não esquecendo que tudo isso se fazia na mais absoluta clandestinidade, em porões da ditadura, com pessoas que, oficialmente, não estavam presas, porque essa era uma lei da repressão, para permitir a prática das torturas sem contestação, além dos convenientes “desaparecimentos”.

Quando leio os argumentos dos que defendem a validade desses métodos irracionais, confesso a dificuldade de aceitar  que a minha espécie tenha chegado à tão falada civilização...  Nada justifica a tortura. Nada. O torturador está abaixo do mais irracional dos animais, até porque não se conhece qualquer animal que torture membros da sua espécie, ou mesmo de outra. Os animais irracionais disputam território, disputam comida e matam por isso, mas não torturam. A tortura se situa em um grau inferior ao da irracionalidade.

No caso em questão, que é emblemático, submeteu-se uma jovem com seus ideais – e por causa de seus ideais – à saga de pessoas sórdidas, sádicas, que cobrem de indignidade e de vergonha aqueles a que serviam. Todos no mesmo saco. E não tem desculpa o martírio,  com choques elétricos e sevícias de todo tipo,  imposto a uma pessoa que, pelo idealismo, acreditava poder  mudar um  mundo de injustiças. É inaceitável.

A Comissão da Verdade foi criada justamente porque o inaceitável  não pode ter prescrição. Muitos desses monstros estão aí , à solta, ainda se justificando. São animais em circulação. Não podem ser nivelados aos que se opuseram à ditadura, mesmo aos que, por força da luta, praticaram a violência armada, mas não a tortura. Guerrilheiros e componentes de movimentos clandestinos contra o poder arbitrário sempre existiram, mas têm sido, historicamente,  diferenciados dos algozes que combatem. Não é por outra razão que Che Guevara é um ícone planetário, estampado como exemplo em todos os cantos do mundo, enquanto  do seu assassino ninguém conhece o nome.    

Os torturadores, com ou sem uniforme, pertencem à categoria dos seres abjetos que fazem, pela extrema maldade, um mundo pior. E se indivíduos desse quilate ainda estão soltos por aí, em circulação, têm que ser punidos. Não há, não pode haver,  anistia para a barbárie, muito menos a partir de uma lei que, todos sabemos, ainda foi votada em tempos de ditadura.

Era Tristão de Athaide, se não me engano, que costumava usar a metáfora de que os jovens são incendiários e que, quando ingressam na idade madura, viram bombeiros. Pode ser. Minha vivência me permite admitir que isso é verdade para muitos, mas não para todos. De qualquer forma,  a Humanidade tem tido necessidade desses incêndios juvenis que a fazem, de tempos em tempos, refletir sobre os seus caminhos. Que o diga a Primavera Árabe, um exemplo bem próximo.  A então jovem Lucia Murat –  como tantos outros jovens que lutaram contra a ditadura – representava  os metafóricos incendiários que atuavam nos anos 60/70, com o fogo das ideias por um mundo melhor.

Felizmente, apesar de tudo, Lúcia Murat ainda hoje mostra a incendiária  coragem dos que não se deixaram vencer , ainda que coexistindo com a covardia dos que fizeram, a ainda fazem, a apologia da indignidade, sob a confortável complacência dos nem sempre inocentes bombeiros de plantão.

Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.

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