Os que me conhecem bem sabem
que não sou muito condescendente com a espécie a que pertenço. Para mim, o ser humano ainda está bem distante de
atingir a um estágio que efetivamente o distinga, no que realmente
interessa, dos chamados seres
irracionais. Penso que, a despeito de todas as conquistas tecnológicas e
materiais, ainda nos situamos em uma
espécie de Idade das Cavernas. A inveja, a perfídia, a calúnia, a traição, a
violência, o egoísmo, o preconceito nos mínimos atos de cada dia, os genocídios que se perpetram de forma permanente,
as guerras sem sentido, enfim, todos os repetidos atos de barbárie
cometidos diuturnamente no planeta não me permitem uma visão otimista,
mas a constatação de que, mudando-se os tempos, os cenários e os atores, o
enredo continua o mesmo.
O otimismo, admito, pode
ser, em muitos casos, um componente
propulsor, um móvel que traz consigo o entusiasmo para novas conquistas
e a esperança de que tudo venha a melhorar. Ele é importante em alguns
momentos, mas será sempre uma atitude romântica, dissociada do real. As
verdadeiras mudanças, se vierem – e cada
vez acho mais complicado isso – terão que vir do juízo crítico, da denúncia, do
comprometimento com a luta pelas causas comuns a todos os homens, que envolvem
a superação das injustiças e desigualdades.
Esse quase desabafo vem a
propósito de tema muito debatido, mas que nunca é demais repisar, somando mais
uma voz à de quantos ainda têm a capacidade de verdadeiramente revoltar-se.
Quando leio um depoimento como o da cineasta Lúcia Murat que, jovem ainda, no
aceso dos seus vinte e poucos anos, por
buscar um mundo mais justo, teve a sua
vida marcada pela vilania de outros seres ditos “humanos”, é difícil ficar
eufórico com o apregoado desenvolvimento ou progresso da Humanidade.
Procure ler na íntegra o que
ela narra, episódios que passam pela ação efetiva de sádicos animalizados,
entre eles militares de alta patente e médicos, que ela claramente nomeia. Procure ler sobre os espancamentos que
sofreu, sobre os choques no pau de arara que envolviam uma “viagem” pelos seios, pela vagina, pela boca. Procure
conhecer a moderníssima técnica de
interrogatório que passava pelo “passeio” de baratas pelo corpo, introduzidas
na vagina. Procure saber a verdade.
Leia o depoimento da
cineasta, não esquecendo que tudo isso se fazia na mais absoluta
clandestinidade, em porões da ditadura, com pessoas que, oficialmente, não
estavam presas, porque essa era uma lei da repressão, para permitir a prática
das torturas sem contestação, além dos convenientes “desaparecimentos”.
Quando leio os argumentos
dos que defendem a validade desses métodos irracionais, confesso a dificuldade
de aceitar que a minha espécie tenha
chegado à tão falada civilização... Nada
justifica a tortura. Nada. O torturador está abaixo do mais irracional dos
animais, até porque não se conhece qualquer animal que torture membros da sua
espécie, ou mesmo de outra. Os animais irracionais disputam território,
disputam comida e matam por isso, mas não torturam. A tortura se situa em um
grau inferior ao da irracionalidade.
No caso em questão, que é
emblemático, submeteu-se uma jovem com seus ideais – e por causa de seus ideais
– à saga de pessoas sórdidas, sádicas, que cobrem de indignidade e de vergonha
aqueles a que serviam. Todos no mesmo saco. E não tem desculpa o martírio, com choques elétricos e sevícias de todo
tipo, imposto a uma pessoa que, pelo
idealismo, acreditava poder mudar
um mundo de injustiças. É inaceitável.
A Comissão da Verdade foi
criada justamente porque o inaceitável
não pode ter prescrição. Muitos desses monstros estão aí , à solta,
ainda se justificando. São animais em circulação. Não podem ser nivelados aos
que se opuseram à ditadura, mesmo aos que, por força da luta, praticaram a
violência armada, mas não a tortura. Guerrilheiros e componentes de movimentos
clandestinos contra o poder arbitrário sempre existiram, mas têm sido,
historicamente, diferenciados dos
algozes que combatem. Não é por outra razão que Che Guevara é um ícone
planetário, estampado como exemplo em todos os cantos do mundo, enquanto do seu assassino ninguém conhece o nome.
Os torturadores, com ou sem
uniforme, pertencem à categoria dos seres abjetos que fazem, pela extrema
maldade, um mundo pior. E se indivíduos desse quilate ainda estão soltos por
aí, em circulação, têm que ser punidos. Não há, não pode haver, anistia para a barbárie, muito menos a partir
de uma lei que, todos sabemos, ainda foi votada em tempos de ditadura.
Era Tristão de Athaide, se
não me engano, que costumava usar a metáfora de que os jovens são incendiários
e que, quando ingressam na idade madura, viram bombeiros. Pode ser. Minha
vivência me permite admitir que isso é verdade para muitos, mas não para todos.
De qualquer forma, a Humanidade tem tido
necessidade desses incêndios juvenis que a fazem, de tempos em tempos, refletir
sobre os seus caminhos. Que o diga a Primavera Árabe, um exemplo bem
próximo. A então jovem Lucia Murat
– como tantos outros jovens que lutaram
contra a ditadura – representava os
metafóricos incendiários que atuavam nos anos 60/70, com o fogo das ideias por
um mundo melhor.
Felizmente, apesar de
tudo, Lúcia Murat ainda hoje mostra a incendiária coragem dos que não se deixaram vencer ,
ainda que coexistindo com a covardia dos que fizeram, a ainda fazem, a apologia
da indignidade, sob a confortável complacência dos nem sempre inocentes
bombeiros de plantão.
Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
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