Como observado segunda-feira na passeata dos mais de 100
mil, os protestos populares em curso constituem terreno de ferrenha disputa
política entre os próprios manifestantes (leia reportagem aqui). O confronto
degringolou ontem, na despedida do outono. No país inteiro, militantes portando
bandeiras, estandartes e símbolos de partidos políticos, centrais sindicais,
entidades estudantis e movimentos sociais foram escorraçados por uma turba
intolerante.
Em São Paulo, os principais executores dessa modalidade de
repressão política foram os skinheads, os “carecas” neonazistas. Botaram para
correr quem vestia camisa vermelha, rasgaram bandeiras de agremiações e
arrancaram faixa do movimento negro. São racistas e homofóbicos. No Rio, essa
turma agride, fere e mata gays.
Na Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, a escória
nazista atacou os judeus por toda a Alemanha, insuflada por Adolf Hitler. No
dia 20 de junho de 2013, foi a vez de ativistas de esquerda serem o alvo, no
Brasil.
Não está em debate o mérito do partido X ou Y, no governo ou
na oposição, menos ou mais comportado. Nem se um sindicato representa
dignamente ou não seus filiados. Ou mesmo se os imensos protestos resultam de
força ou fraqueza de uma ou outra sigla _as opiniões são legítimas sobre todas
essas questões. O que se discute é o direito democrático de seus integrantes
participarem das manifestações.
Desde os primeiros atos do Movimento Passe Livre, duas
semanas atrás, os partidos tiveram direito de estar presente. No Rio, foi assim
há quatro dias. Se outros chegaram ontem, é também seu direito, porque inexiste
veto dos organizadores dos protestos, onde se sabe quem são eles.
Como se disseminou um robusto sentimento antipartidos,
sobretudo na classe média, os neonazistas capitalizam frustrações e comandam os
ataques. É legítimo rejeitar siglas, tomar distância delas e derrotá-las nas
urnas. Impedir sua expressão é mania de ditaduras. Além de ser irônico que determinadas
agremiações, cuja militância foi decisiva na construção do movimento contra o
reajuste das tarifas, sejam agora reprimidas.
Não deixa de ser curioso: quem protesta contra algumas
covardias policiais agride covardemente quem não concorda com suas ideias. A
faixa “Meu partido é meu país” é tão legítima como a do partidinho mais
mequetrefe. Todos têm direito de se manifestar.
Em 1935, o presidente Getulio Vargas colocou na ilegalidade
uma frente de esquerda, a Aliança Nacional Libertadora. Com o golpe de 37,
instaurando a ditadura do Estado Novo, baniu o centro, a direita e a extrema
direita. Em 47, a Justiça cassou o registro do PCB, e no ano seguinte seus
parlamentares, eleitos pelo voto popular, tiveram os mandatos cassados.
A ditadura implantada em 1964 aboliu os partidos do regime
democrático restabelecido em 1945-46, inclusive aqueles, como UDN e PSD, que
colaboraram para a deposição do presidente constitucional João Goulart, cuja
base tinha entre outros o PTB e o PSB.
Durante aquele tempo de trevas, a ditadura descaracterizou o
Congresso, impondo cerca de uma centena de cassações de deputados e senadores
do MDB. Triturou a Frente Ampla de Jango, Carlos Lacerda e Juscelino
Kubitschek.
As ditaduras, do Estado Novo à de 1964-85, mataram
militantes que batalhavam pelo direito de existência e expressão de partidos.
Eles são mártires da democracia e do país.
A União Nacional dos Estudantes, outro alvo da malta, teve
um presidente, Honestino Guimarães, assassinado pela ditadura. A ditadura que
matou e sumiu com o corpo do líder estudantil, em 1973, impedia a livre
organização partidária. Trucidava quem queria se organizar.
Essa mesma ditadura sofreu uma derrota dura com a formação
da CUT, em 1983. As outras centrais sindicais são igualmente legais e
legítimas, simpatizemos ou não com elas. Em 1979, o operário Santo Dias foi
assassinado com um tiro da polícia. É a memória de gente como ele que é
insultada quando fascistoides proíbem os sindicalistas de se manifestar. Como
no Rio, rasgando seus panfletos.
É impressionante que certos analistas políticos vibrem com a
pancadaria contra bandeiras partidárias, mas não apresentem uma só restrição às
ações neonazistas. Impressiona, mas não surpreende: eles apoiaram a ditadura, a
intolerância está em seu DNA.
Condenável é partido aparelhar movimentos e protestos,
impondo sua agenda particular às reivindicações coletivas. Isso é partidarismo.
Mas a presença de agremiações políticas é uma tradição democrática, e muito o
Brasil deve a elas. Esqueceram que na Campanha das Diretas (1984) e no Fora,
Collor (92) as bandeiras tremulavam nos comícios? Nos palanques, uniam-se
dirigentes de partidos para todos os gostos e muita gente que não ia com a cara
deles, mas estava unida para melhorar o Brasil.
Os que aplaudem a massa reprimindo militantes, tendo na
“vanguarda” neonazistas, têm partido, sim: o Partido da Intolerância, o Partido
do Ódio. Já vimos esse filme.
Os provocadores que espalham a baderna, fração
ultraminoritária das manifestações, não são os militantes partidários, mas os
skinheads, alguns ditos punks e outros ditos anarquistas, que de anarquistas
nada têm. Os militantes partidários não promoveram vandalismo, mas foram alvo
deles _tomar, rasgar e queimar bandeira é ato de vândalo.
Os protestos em curso, que arrancaram bravamente a redução
das tarifas dos transportes públicos, exibem algumas características novas. Uma
delas é que reúnem no mesmo evento quem, em 1964, participaria da Marcha da
Família, de direita, e em 1968, da passeata dos 100 Mil, dirigida pela
esquerda, contra a ditadura. Daí que o ódio dos neonazistas encontre
ressonância.
Quem não tem legitimidade para participar dos atos são essas
facções que ontem agrediram os militantes políticos, sindicais, estudantis e
sociais. São os herdeiros da Ação Integralista Brasileira, a tradução
tupiniquim para o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini, na década de
1930.
É legítimo amar e odiar os agredidos de ontem.
Nada mais natural do que achar que um e outro são oportunistas _o que não falta
no mundo é oportunista. Mas quem não gosta de partido é ditadura
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