Contradições do mundo em que vivemos
Luiz Gonzaga Belluzzo
Luiz Gonzaga Belluzzo
O sarcasmo de “direita”, sempre negativo, é cético e destruidor não só da forma ‘contingente’ mas do conteúdo ‘humano’ dos sentimentos e crenças na justiça, na igualdade e na fraternidade, elementos ideológicos difundidos pelas tendências democráticas herdadas da Revolução Francesa. (Antonio Gramsci, em Maquiavel, a Política e o Estado Moderno)
Devemos sempre resistir à impressão de que o mundo enlouqueceu. O famoso conto de Machado de Assis “O Alienista” nos deixa essa lição. Doutor Simão Bacamarte, depois de trancar toda a cidade no manicômio - inclusive a sua própria mulher - acabou por trancar a si mesmo.
Se não é saudável nem prudente apostar na loucura geral, imaginando-se em plena sanidade, há evidências de que grassa uma epidemia de capota furada. Junto dois textos que julgo oportuno republicar diante das manifestações –contra, a favor e muito ao contrário - suscitadas pela prisão dos diretores da Camargo Correa e de Eliana Tranchesi. Os dois episódios desataram um desfile de fúria e descontrole moral entre os comentaristas de blogs e missivistas das colunas de Cartas ao Leitor. Não se trata aquí de discutir as razões e as justificativas das ações da polícia ou a procedência das decisões judiciais. Cuida-se de examinar as reações aos fatos e avaliar o estado da consciência jurídica que predomina entre os cidadãos deste país.
Nos episódios mencionados, os ululantes atacaram, mais uma vez, com as bordunas do preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nas ações em massa contra última flor do Lácio, inculta e bela. Alguém já dizia que há método na loucura, mas a desrazão caprichou na metodologia. Expressões grosseiramente facistóides poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade e descuido. A generosa distribuição de adjetivos foi acompanhada de exaltadas conclamações para o retorno dos militares ou sugestões para que o desrespeito à lei e aos direitos individuais se transformasse em regra geral e irrestrita.
Torço para que o destampatório seja mais um esgar do que um ideário consistente. Mas não custa ficar esperto: os estudiosos do totalitarismo sabem que a “auto-vitimização” da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram métodos eficientes para a conquista do poder absoluto. Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de amadores.
As novas operações da Polícia Federal desataram, ademais, a costumeira rodada de críticas ao poder Judiciário e às leis destinadas a proteger os direitos individuais, – a começar da Constituição. As acusações, em boa medida, partem de certa esquerda de boca torta. Em sua sede de “justiça” (com letra minúscula) ela se acumplicia aos extremistas de direita das classes remediadas, em sua campanha para “limpar” a sociedade.
“A polícia prende, a Justiça solta”. Refrão midiático destinado ao imaginário de um povo habituado a ser preso e espancado arbitrariamente, desamparado da consciência de seus direitos. O século XXI já vai completar uma década e, no Brasil, a letra da lei que garante os direitos do indivíduo jaz inerte nos compêndios. As garantias individuais ainda não saíram dos códigos para ganhar vida do povaréu, quotidianamente massacrado pelos abusos dos senhoritos da “ordem” e seus sequazes.
No livro What Does the Ruling Class Do When It Rules - pouco conhecido, mas fundamental para o entendimento das relações de poder e de dominação no capitalismo contemporâneo - Göran Therborn mostra que, na Europa dos séculos XIX e XX a consciência dos direitos moveu a luta dos subalternos e transformou o Estado numa instância de “totalização das relações sociais”. Suas intervenções realizam a mediação entre as classes e entre os membros individuais das diferentes classes.
O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado de forma mais clara pelo grau de independência adquirido pelos procedimentos judiciais diante do poder material da camada dominante. Diz Therborn: “não são poucas as contradições que podem surgir da independência do judiciário numa sociedade de classes.. Em certas circunstâncias, a autonomia do judiciário pode se tornar fonte de conflitos no interior da classe dominante, porquanto há contradição entre o caráter necessariamente abstrato e universal da lei na economia capitalista de mercado e as exigências do exercício do poder real pelas camadas dirigentes. Quando os juízes não são mais criaturas das classes superiores, a aplicação da lei pode criar embaraços para os fundamentos materiais da dominação”
O jurista Herbert Hart, no livro The Concept of Law diz com razão que o juiz não pode decidir como supremo censor e guardião da moralidade pública. A primeira e ilustre vítima do particularismo moralista será o princípio da legalidade que deve estabelecer com a maior clareza possível o que é lícito e o que não é. Exemplo de atropelo ao principio da legalidade é a lei promulgada pelo regime nazista em 1935. Ela prescrevia que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’ popular”.
No ensaio O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo, Herbert Marcuse argumentava que, na era moderna, o domínio da lei, o monopólio do poder coercitivo e a soberania nacional são as três características do Estado que mais claramente expressam a divisão racional de funções entre Estado e Sociedade. “A lei trata as pessoas, se não como iguais, pelo menos sem considerar as contingências sociais mais óbvias; é, por assim dizer, a corte de apelação que mitiga os infortúnios e as injustiças que as pessoas sofrem em suas relações sociais. O caráter universal da lei oferece proteção universal a todos os cidadãos, não apenas em relação ao desastroso jogo de auto-interesses conflitantes, mas também aos caprichos governamentais. O regime nacional-socialista aboliu estas propriedades da lei que a tinham elevado acima dos riscos da luta social.”
Ao observar a tragédia do nazismo, Marcuse teve lucidez para perceber que o projeto da igualdade social e econômica está ancorado no respeito ao princípio abstrato da igualdade de todos perante a lei. A idéia de uma lei para os ricos e outra para os pobres, monstruosidade pré-moderna, consagra, ao invés de exterminar, as diferenças de poder e de dinheiro entre os cidadãos, como condições incontornáveis e eternas da vida social. Nos anos 20 do século passado, os comunistas alemães denunciaram os direitos inscritos na Constituição de Weimar como uma forma de encobrir a exploração capitalista. Não atentaram para o seu caráter progressista em uma de uma sociedade ultra conservadora, hostil às forças democráticas.
Para Marcuse, era permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: no nazismo, os grandes grupos privados produziram a “coletivização privada” das relações econômicas, sobretudo ao impor o trabalho compulsório aos trabalhadores “livres”. Para tanto se apoderaram do Estado e suprimiram a sua independência formal em relação à sociedade civil. Sem as mediações da ordem jurídica “liberal”, os interesses da classe dominante passaram a se exercitar diretamente através da ação do Estado Policial.
No mundo das grandes empresas e da inevitável mediação do Estado nas disputas entre os competidores privados, a exceção tende a se tornar a regra. Tal estado de excepcionalidade deságua na proliferação legislativa casuística e na ameaça permanente ao caráter abstrato e universal da norma jurídica. A contradição se torna aguda: de um lado, a liberdade dos indivíduos no mercado exige a independência do Judiciário, certeiro na aplicação da lei e cuidadoso em seus procedimentos;de outra parte, a “corrupção” quase congênita, engendrada pela concorrência econômica mediada pelo Estado, estimula a formação de correntes de opinião que propugnam por formas primitivas de punição e de vingança.
A sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos. A identidade é “recebida” sem que o indivíduo seja indagado sobre suas preferências. A história dessas sociedades trouxe o mercado como instância dominante da sociabilidade, o que supõe o “indivíduo livre” cujas ações egoístas ameaçam, para o bem e para o mal, a estabilidade do conjunto. Essa forma peculiar de sociabilidade torna difícil a compreensão e a mediação do conflito entre a reprodução da sociedade e a construção da autonomia individual, relação contraditória que só pode ser mediada precariamente pela política e pelo direito. Para assumir a condição de sujeitos de direitos e deveres, os indivíduos são constrangidos a abdicar de sua moral particularista. O consensus iuris é o reconhecimento dos cidadãos de que o direito, ou seja, o sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado e legitimados pelo sufrágio universal deve punir rigorosamente quem se aventura à violação da norma abstrata. Mas a mediação do Estado é precária, sugere Giorgio Agambem, pois a soberania é um frágil compromisso entre a natureza e a razão, o direito e a violência.
Hanna Arendt nas Origens do Totalitarismo abordou as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios promoveu a substituição empresa individual pela a coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isto se juntou a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais.”
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social, sem a supressão das relações de dominação. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital exigiu novos pecados para manter o sistema em funcionamento e foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental. Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória”. A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.
Os meios de comunicação de massa, compelidos pela disputa de audiência, são arrastados para o abismo da vulgaridade, pelos “movimentos da ralé”. Eles repercutem e realimentam as simplificações e slogans de um tipo de sociabilidade que necessita cada vez mais, para reproduzir suas formas de dominação, da incompreensão dos indivíduos abandonados à sua solidão. Essa relação entre a linguagem midiática e as relações no interior da sociedade de massas legitimam as tropelias e ilegalidades praticadas pelas burocracias públicas e promovem a subversão da hierarquia entre os poderes do Estado. As empresas corrompem a política e, assim, degradam o instituto da representação popular. Procuradores e policiais fazem gravações clandestinas ou inventam provas e assim corrompem o princípio da legalidade e da impessoalidade nos atos da administração pública. Nas altas esferas do Olimpo midiático, “a imprensa diária dispara a cortina de relâmpagos”¹ e trata de manipular a opinião pública, atemorizar juízes e fomentar a arbitrariedade dos esbirros e beleguins.
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