Será que aquele empresário falido, que processou Lula por conta da história dos olhos azuis, vai processar o Ministro Carlos Ayres Britto?
Não à cultura de branco
Entrevista - Carlos Ayres Britto
Autor(es): Paloma Oliveto e Mirella D’Elia
Correio Braziliense - 06/04/2009
Relator do processo sobre a reserva Raposa Serra do Sol, ministro diz ter enfrentado o próprio preconceito
O óleo sobre tela retratando o rosto de um indígena foi presente de uma amiga, enviado de São Paulo há pouco tempo. O trabalho encanta o ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, que colocou o quadro numa das paredes da sala de seu apartamento, na Asa Sul. Não é só a beleza da obra que o conquistou, mas a própria questão indígena. Ele foi o relator do polêmico processo sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Nove dos demais 10 colegas de tribunal acompanharam seu voto, no qual defendeu a manutenção do decreto homologatório que destina a índios de cinco etnias uma área de mais de 1,7 milhão de hectares em Roraima.
Em entrevista ao Correio, Ayres Britto confessa que, antes de se debruçar sobre os mais de 50 volumes do processo, tinha opinião completamente diferente da proferida em seu voto. “Comecei me pegando preconceituoso. A gente pensa que não tem preconceito, mas tem. Está lá no fundo da gente.” Para ele, até então, o índio era um ser primitivo, de cultura inferior. Mas num minucioso trabalho que compara a uma garimpagem, o ministro foi transformando suas ideias. “Fui explorando os veios da Constituição. Palavra por palavra.” Literalmente, estudou cada termo do capítulo sobre os indígenas. Nenhuma preposição escapou. Entendeu que estava pensando com cabeça de branco e indo no sentido oposto do que prega a lei.
Ao fim, descobriu-se um admirador dos índios. “Estou feliz da vida com meu voto. O Supremo colocou o Brasil no lugar que lhe cabe constitucionalmente: na vanguarda mundial da questão indígena”, admite. Defendeu com veemência seu relatório quando o ministro Marco Aurélio Mello, único voto vencido no processo, mostrou-se contrário à demarcação em área contínua. De acordo com Ayres Britto, para o índio, a terra não é um bem mensurável, que pode ser trocada por uma indenização. “Para eles, a terra é um ser. Tirá-los de perto dela é uma violência.”
Com um livro de poemas escrito por índio nas mãos, o ministro-poeta diz que seu interesse pela questão indígena foi despertado. E faz uma comparação: começou como o atirador do Velho Oeste Buffalo Bill, e terminou como Touro Sentado, o célebre líder sioux norte-americano, que morreu lutando por seu povo.
Ojulgamento sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol foi bastante polêmico. O senhor já tinha um posicionamento antes de ser relator?
Não, vou contar a pura verdade. Quando eu comecei com meu voto, a minha cabeça era “de branco”. Então, já fui dizendo aquilo mesmo: “Como é que se reserva tanta terra para índio?”; ou então: “Os índios fazem parte de uma cultura primitiva e os não índios de uma cultura evoluída”. Comecei assim, me pegando preconceituoso. Às vezes a gente pensa que não tem preconceito, mas tem. Está lá no fundo da gente. A minha cultura me impunha esse condicionamento, de ver os índios como seres inferiores, à espera de tutela, como se fossem incapazes. Mas à medida que eu ia lendo a Constituição, palavra por palavra, termo por termo, expressão por expressão, eu, que tinha a obrigação de ser um militante da Constituição, fui percebendo que o capítulo versante sobre os índios foi feito por antropólogos e indigenistas de grande conhecimento. A Constituição é um sonoro não a essa cultura do branco. O que ela diz é que há duas civilizações. A do branco e a do índio. Há duas dignidades.
No seu voto, o senhor falou que os índios têm o direito de nos catequizar. O senhor foi catequizado por eles?
Sim, exatamente isso. A aculturação é uma estrada de mão dupla. Não é só o índio nos conhecer para aprender conosco. É a gente conviver com os índios para aprender com eles. Para a Constituição, a aculturação é uma soma, um ganho, uma justaposição. O índio aculturado ganha a cultura do branco sem perder sua cultura. O branco que convive com os índios aprende com eles. Eu fui aprendendo aos pouquinhos. Refletindo, estudando, indo atrás das coisas. Eu comecei Buffalo Bill e terminei Touro Sentado. Foi assim que o meu voto começou e terminou. Terminou por um modo diametralmente oposto de como começou. Para os índios, a terra não é um bem. Para eles, a terra não é uma coisa, é um ser, é um espírito protetor. A Constituição diz: “Os índios não podem ser removidos de suas terras, a não ser diante de uma grave calamidade”. Na cabeça do índio é o seguinte: “Não adianta me pagar pela terra”. Ele não quer ser indenizado nem reassentado. No imaginário do índio, ele pensa: “Eu vou sair daqui, mas meus ancestrais vão ficar”. Então é uma violência para eles.
Com a aprovação da condicionante do ministro Menezes Direito, que impede a revisão de demarcações já feitas, como ficam os outros processos já impetrados no STF?
Na realidade, as 19 cláusulas foram uma inovação de forma, e não conteudística. Já estavam no meu voto e na Constituição. O Menezes Direito me disse várias vezes: “Britto, estudei, estudei, estudei, e nossos votos são rigorosamente convergentes. Em tudo. Apenas, eu vou inovar na técnica”. E eu aplaudi. Ele é um ministro muito culto, muito preparado. E ele foi muito elegante quando sugeri a ele uma nova redação àquelas cláusulas. Ele acatou com uma elegância, tudo ele acatou. No conteúdo, nossos votos convergiram. Mas essa número 17 foi novidade. Ele disse o seguinte: que demarcação indígena, uma vez feita, está ungida e sacramentada, e nunca mais pode ser revista judicialmente. Eu discordei, mas fui voto vencido. Tentei ainda estabelecer um limite temporal. Demarcação feita depois da Constituição não se mexe, mas as de antes? É preciso se mexer, para assegurar aos índios a reprodução física e cultural. Mas fui voto vencido.
E o que ocorre com outros processos que já estão no Supremo, como o dos Pataxó Hã-hã-hãe?
Aí é que está. Ao levar ao pé da letra essa decisão, essa cláusula, não se reabre a discussão. Tenho esperança ainda de reverter. A Raposa Serra do Sol exaltou muitos ânimos, mas numa outra oportunidade acho que os ministros que apoiaram Menezes podem rediscutir isso, diante de um caso concreto de vistosa contração territorial em desfavor dos índios.
O senhor foi o relator de um dos processos mais polêmicos do STF, sobre o uso de embriões para produção de células-tronco. Tem acompanhado o resultado das pesquisas?
Acompanho. Foi uma decisão magnífica para a ciência, para a pesquisa científica e tecnológica. Porque a partir dali já se produziu uma linhagem de células-tronco embrionárias totalmente brasileira. Os pesquisadores agora estão animados porque sabem que não vai faltar dinheiro e não vai haver uma interrupção; não vai haver uma liminar suspendendo as pesquisas. Foi uma decisão que beneficiou toda a humanidade. Fiquei muito feliz com isso, particularmente feliz com essa decisão de vanguarda. Você pode congelar um embrião, pode congelar a fé, mas não pode congelar a ciência. Então nós descongelamos a ciência.
O senhor acha que o julgamento sobre o aborto de fetos anencefálos vai ter um impacto ainda maior na sociedade?
Talvez não maior, mas tão polêmico quanto. Essa discussão já foi travada com paixão, com emoção, quando da discussão das células-tronco embrionárias. Foi como que uma prévia dessa nova discussão. São duas discussões, se atentarmos bem para a natureza das coisas, não inteiramente coincidentes. Quando você está discutindo sobre células-tronco embrionárias, você está falando de um embrião que não foi pinçado do ventre feminino, ele foi produzido no laboratório. No caso da interrupção de gravidez de feto anencéfalo, o embrião surgiu intracorporeamente e resultou de uma relação carnal. Houve uma gravidez, há um feto naturalmente produzido e não artificialmente produzido. É diferente. Por isso, talvez as discussões do ponto de vista religioso se tornem mais acesas.
O senhor já tem uma opinião sobre o assunto?
Eu tenho um voto de certa forma antecipado, quando da primeira discussão. Meu ponto de vista lá manifestado é de que martírio não se impõe, se assume espontaneamente. Isso está no meu voto. Está dito que não se pode forçar a mulher ao martírio de levar às últimas consequências uma gravidez que já se sabe prometida ao túmulo. Se a mulher quiser assumir, assuma. Mas não pode ser forçada a assumir uma gravidez que corresponde ao mais doloroso e talvez cruel dos estágios, que é o de se preparar psicologicamente para ver seu filho involucrado numa mortalha. Porque é isso que vai acontecer. É uma verdadeira
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