23/06/2009
Um enredo em dois atos e muitas omissões. Recentemente, o Brasil se indignou diante da TV, no horário nobre de uma noite de domingo, com uma mãe que, no interior do Pará, oferecia a filha a um repórter em troca de três latas de cerveja.
O "show da vida" ali não tratava de uma ficção, mas de um flagrante da dura realidade vivida por milhares de meninas invisíveis que são exploradas sexualmente no breu de ruas, becos, botecos e esquinas do país.
Na última semana, no conforto de suas salas climatizadas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), que havia absolvido dois réus acusados de exploração sexual de menores por entender que cliente ou usuário eventual de serviço oferecido por prostituta não se enquadra no crime previsto no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Aqui cabe uma pausa; vamos aos autos, senhores magistrados, digo, leitores. Uma das menores violentadas -que chamaremos de Virgínia- não nasceu nas ruas. Sua mãe ofereceu Virgínia ao amante, numa discutível prova de amor. Seviciada e humilhada, Virgínia fugiu de casa e, nas ruas, encontrou uma amiga, também menor, filha de uma trocadora de ônibus, que se iniciara na prostituição em troca de um vidro de xampu.
A decisão do STJ, em si, já é absurda. A possibilidade de criar uma jurisprudência do "liberou geral" é, então, ultrajante. Ela viola os direitos humanos e avilta o espírito da própria lei.
Afinal, os legisladores que criaram o Estatuto da Criança e do Adolescente não foram permissivos e deixaram claro que não há nenhuma distinção de classes sociais, muito menos atenuantes no caso de a violência sexual ser praticada contra crianças que já tenham sido violentadas anteriormente. Em nenhum lugar da lei está escrito que a ausência da virgindade pode se transformar numa atenuante para os que cometem os odiosos crimes sexuais.
Voltando aos autos. Dois homens em um ponto de ônibus assediam e contratam Virgínia e a outra menor para um programa mediante o pagamento de 80 reais para cada uma. No motel, além de fazer sexo, espancam as garotas e as fotografam desnudas em poses pornográficas.
O cioso tribunal manteve a condenação dos réus apenas por terem fotografado as menores -será que foi pela falta de registro profissional? Silenciou quanto ao fato de as meninas terem sido agredidas fisicamente, o que, por si só, já agrega traços de sadismo e violência que deveriam agravar a situação dos réus.
Foi uma infeliz e retrógrada decisão jurídica baseada em um anacrônico Código Penal sexagenário que tipifica esse tipo de crime apenas contra os costumes. Ora, bastava aos ilustres magistrados considerar que a atual legislação -o ECA- já responde a isso e não ficar no cômodo aguardo da alteração do Título VI do Código Penal, paralisado no Senado Federal no aguardo de discussão e votação. Torpe e lamentável interpretação, optaram os magistrados.
Quem se der ao trabalho de consultar o relatório da CPI que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no país vai se deparar com o caso acima citado e outras dezenas de flagrantes do flagelo documentado por meses de apuração em todos os Estados brasileiros.
O caso das crianças matogrossenses choca pela sua brutalidade e perversidade. Deveria servir de exemplo para que o país voltasse os olhos para o tema da violência infantil, não pelo viés machista e sexista dos primórdios do século passado, mas pela busca de um arcabouço jurídico que garanta a igualdade entre os sexos e puna de forma rigorosa todos os crimes cometidos contra a dignidade humana, ainda mais quando as vítimas são crianças e adolescentes no desamparo de uma família esgarçada ou, no mais das vezes, não existente.
São histórias de meninas invisíveis que tiveram seus instantes de esperança e luz ao contar seus dramas diante de congressistas, procuradores e representantes da sociedade civil.
A decisão do STJ apaga essa luz e devolve ao breu, à insignificância e ao abandono jurídico essa legião de brasileiras ultrajadas e violentadas nas suas vidas. Crianças definitivamente marcadas em suas mentes, seus corpos e seus corações.
Maria do Rosário Nunes, pedagoga, é deputada federal pelo PT-RS. É presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e foi relatora da CPI que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.
Texto originalmente publicado na coluna Tendências/Debates do jornal Folha de S.Paulo, edição de 23/06/2009.
Um comentário:
é mesmo um absurdo isso! espero que o STJ volte atras. Até a ONU deu um puxao de orelha no STJ,é uma vergonha!
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