Começar de novo
Admissão pelo presidente do
STF de que penas foram elevadas artificialmente aumenta irregularidades
Se o Supremo Tribunal
Federal pretende recuperar sua respeitabilidade, só há uma saída: refazer, do
começo ao fim, o julgamento do chamado mensalão petista. A admissão, pelo
presidente do STF, de que penas foram aumentadas artificialmente em prejuízo
dos réus fez transbordar o copo de irregularidades da Ação Penal 470.
Relembrando algumas: a
obrigatoriedade de foro privilegiado para acusados com direito a percorrer
várias instâncias da Justiça; a adoção do princípio de que todos são culpados
até prova em contrário, cerne da teoria do "domínio do fato"; o
fatiamento de sentenças conforme conveniências da relatoria. E, talvez a mais
espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações.
A jabuticaba jurídica tem
nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que
originou a AP 470.
Não é um documento qualquer.
Por intermédio dos 78 volumes do inquérito 2474, repleto de laudos oficiais e
baseado em investigações da Polícia Federal, réus poderiam rebater argumentos
decisivos para sua condenação.
A negativa do acesso ao
inquérito foi justificada da seguinte forma: "razões de ordem prática
demonstram que a manutenção, nos presente autos, das diligências relativas à
continuidade das investigações [...], em relação aos fatos não constantes da
denúncia oferecida, pode gerar confusão e ser prejudicial ao regular
desenvolvimento das investigações." O autor do despacho, de outubro de
2006, foi ele mesmo, Joaquim Barbosa.
Imagine a situação: o
sujeito é acusado de homicídio, o julgamento do réu começa e, durante os
trabalhos da corte, antes mesmo de qualquer decisão do júri, a suposta vítima
aparece vivinha da silva. "Ah, mas outra investigação afirma que ele
estava morto", argumenta o promotor. "Isto vai criar confusão".
O julgamento continua. O vivo respira, mas nos autos está morto. E o réu, que
não matou ninguém, é condenado por assassinato.
O paralelo parece absurdo,
mas absurdo é o que fez o STF. A existência do inquérito 2474 tornou-se pública
em 2012, em reportagem desta Folha sobre o caso de um executivo do Banco do
Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos.
A conexão com a AP 470 era
evidente, pois focava o mesmo Visanet apontado como irrigador do mensalão. O
processo havia sido aberto seis anos antes, em 2006, portanto em tempo mais do
que hábil para ser examinado.
Nenhum desses fatos é
propriamente novidade. Eles ressurgiram em janeiro deste ano, quando o ministro
Ricardo Lewandovski liberou a papelada aos advogados de Henrique Pizzolato.
Estranhamente, ou convenientemente, o assunto passou quase despercebido.
É hora de acender a luz. O
comportamento ao mesmo tempo espalhafatoso e indecoroso do presidente do STF
tende a concentrar as atenções no desfecho da AP 470. Neste momento, por razões
diversas, pode ser confortável jogar nas costas de Joaquim Barbosa o ônus, ou o
bônus, do julgamento. É claro que seu papel é inapagável, mas ele tem razão ao
lembrar que o fundamental foi decidido em plenário.
No final das contas, há
gente condenada e presa num processo que tem tudo para ser contestado. O país
continua sem saber realmente se houve e, se houve, o que foi realmente o
chamado mensalão.
Conformar-se, ou não, com o
veredicto da inexistência de formação de quadrilha é muito pouco diante das
excentricidades jurídicas, para dizer o menos, que cercaram o julgamento e têm
orientado a execução das penas.
Embora desperte curiosidade
justificada, o que menos importa é o futuro de Barbosa. Quem está na berlinda é
o STF como um todo: importa saber se o país possui uma instância jurídica com
credibilidade para fazer valer suas decisões.
RICARDO MELO, Folha de São Paulo
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