domingo, 9 de novembro de 2008

AINDA SOBRE OBAMA


Sim, Obama pode fazer!
Uri Avnery, 8/11/2008

Em julho de 2004, a convenção do Partido Democrata preparava-se para indicar John Kerry como candidato à presidência. O comitê organizador precisava de um orador para a solenidade, para fazer o discurso que lá se chama "keynote speech". Na tradição norte-americana, esse discurso, literalmente, 'dá o tom', 'afina' o tom de toda a convenção.

"Talvez, um orador negro, dessa vez", alguém sugeriu. O chefe gostou da idéia. "Mas quem?"

Alguém então, sem muita convicção, disse que conhecera em Chicago um jovem de nome estranho, negro e excelente orador. "Podemos tentar."

Não sei se esse diálogo aconteceu. Se não, foi apenas um pouco mais de história inventada.
"Dêem-me marechais com sorte!", Napoleão pediu, certa vez.

Há gente que tem sorte, porque sabe pegar a sorte com as duas mãos, e não larga. É um talento. Barack Obama é desses.

O discurso que fez naquela convenção, há apenas quatro anos, foi um sucesso. Inspirou o partido – aflito, então, como todo o país. Ofereceu mensagem de esperança, que levantou os espíritos, e, mais que isso, uma mensagem de unidade e pacificação. O mote foi: Vamos unir outra vez os EUA!

Parece que, dentre centenas de idéias possíveis, essa tocou fundo o coração dilacerado da nação americana. Fez-se contato entre o orador e o público – o contato mágico com que todo orador sonha, e só poucos conseguem. Naquela conexão estava vivo o mistério que a filosofia alemã chamou de Zeitgeist, o espírito de um tempo, de uma era.

Obama sentiu que se conectara à psiquê dos norte-americanos. Daquele momento em diante, nunca mais esqueceu aquela mensagem. Manteve-se fiel a ela durante a longa campanha eleitoral. E aquela mensagem levou-o à vitória.

Fácil não foi. Já participei de muitas campanhas, infinitamente menores, é verdade, mas sei como é difícil fixar um tema central e sei também que muito mais difícil é conseguir que o tema grude no candidato, como uma segunda pele.

Numa campanha eleitoral surgem incontáveis tentações, iscas, armadilhas, que podem afastar o candidato, de sua mensagem central, ou para reagir a eventos circunstanciais, ou para aproveitar oportunidades que surjam, ou para responder a ataques dos adversários. É muito difícil controlar-se e manter o rumo inicial.

Essa semana, muita gente elogiou muito a campanha de Obama. Duvido que todos saibam o quanto de acertos houve, de fato, nessa campanha. Obama manteve-se rigorosamente sob controle, quando poderia ter-se irritado, poderia ter respondido com dureza à difamação e aos insultos, poderia ter retribuído na mesma moeda. Nada disso. Foi uma rocha, inalterável, do primeiro ao último dia. John McCain, por sua vez, não conseguiu manter-se fiel ao personagem que iniciou a campanha – herói de guerra, íntegro, símbolo de honestidade e decência. Várias vezes recorreu à difamação. E exibiu ao seu lado a figura vulgar, sem grandeza, de Sarah Palin. No final, liberou seus correligionários da Florida para divulgar propaganda mentirosa, em que se dizia que Obama seria amigo de Fidel Castro e que conspiravam para fazer, dos EUA, uma segunda Cuba. Só por isso já mereceria perder. E, afinal, por isso ou não, perdeu.

Obama não perseguiu a sorte: a sorte o acompanhou sempre. O fenômeno Palin, extraordinário erro, ato de desatino da campanha de McCain, atraiu para Obama os votos femininos. O colapso econômico, que ocorreu no auge da campanha, empurrou-o para a vitória. Todos, na sociedade americana, suplicavam por mensagem positiva, por alguma mensagem de salvação.

EM CENTENAS de cidades, em todo o mundo, multidões dançaram nas ruas, festejando o resultado das eleições nos EUA. Naqueles momentos, recompôs-se e renovou-se o contato entre os EUA e o mundo, rompido pelos movimentos deletérios de Bush.

Em Telavive não houve festa. Em toda Israel havia apreensão, no ar. A Israel oficial deu sinais de muita preocupação com a novidade.

Tivesse havido alguma comemoração na praça central de Telavive, eu certamente lá estaria. Mas minha alegria não seria perfeita, porque sempre lembro o houve naquela praça, há nove anos. Ali, o Barak de Israel, Ehud, festejou sua eleição. O país também respirou aliviado, exatamente como os EUA, essa semana. Foi como uma libertação. O governo de Binyamin Netanyahu's havia sido desastre completo e irremediável, um pesadelo de corrupção, divisões, polarização e absoluto fracasso. Barak seria o salvador da pátria. Cem mil pessoas acorreram à Praça Rabin, espontaneamente. E dançaram e cantaram e ouviram com máxima atenção o discurso de Barak, o Redentor.

O que aconteceu depois, todos sabem. Em poucos meses, Barak já decepcionara todo o país, falhou sob todos os aspectos e destruiu tudo o que Yitzhak Rabin havia construído. Os votos desertaram dele e a coroa passou para a cabeça de Ariel Sharon. Do início ao fim, o episódio durou menos de dois anos.

Espero de todo o coração que nada disso aconteça ao Barack dos EUA. Mas, essa semana, muitos israelenses recordaram aqueles dias. Hoje, daqui a algumas horas, muita gente acorrerá à mesma praça, para a cerimônia em memória de Yitzhak Rabin, primeiro-ministro assassinado ali, na praça que hoje leva seu nome. Acredite quem quiser: o principal orador será Ehud Barak.
Dentro de três meses, haverá eleições gerais em Israel. Não temos por aqui nenhum Barack Obama que reacenda nossa esperança.

Obama é um grande político. Minha definição de "grande político" é um político que não parece político. Como Abe Lincoln, como Mahatma Gandhi, como Franklin Delano Roosevelt, como David Ben-Gurion, todos jogadores excepcionais do jogo político, políticos da cabeça aos pés. Mas não pareciam políticos. Acho que Obama é político como esses.

Em Israel, o candidato que espera vencer, Binyamin Netanyahu, é exatamente o oposto. Transpira pequena política por todos os poros. Foi completo fracasso como primeiro-ministro. Se vencer, teremos mudança-zero ou mudança para pior.

Ehud Barak é outro que parece ser o avesso do Barack dos EUA. Como Netanyahu e Tzipi Livni, pertence à elite asquenaze "branca", sem qualquer conexão afetiva ou emocional com as minorias. É militarista até a medula. Aproveitou-se, por exemplo, da noite em que Obama foi eleito, com a atenção do mundo desviada para os EUA, para violar o cessar-fogo e executar ação militar de flagrante provocação, na Faixa de Gaza.

Resta Tzipi Livni. Existirá nela alguma fagulha do brilho estelar de Obama? Difícil dizer, mas pouco provável. Não é grande oradora. De fato, nem oradora é, o que para muitos parece ser uma vantagem. Mas prometeu "uma nova política". Não há notícia de que esteja ligada a escândalos de corrupção, diferente, nisso, dos demais, seja o ainda primeiro-ministro, Netanyahu ou Barak. Não é militarista. O trabalho que fez como ministra dos Negócios Estrangeiros deu-lhe alguma credibilidade como diplomata.

A idéia que une quase todos os israelenses é a importância de preservar boas relações com os EUA. Todos sabem que a atual política de Israel só é possível enquanto o país receber integral apoio dos EUA. Dentre os três candidatos, Tzipi Livni parece ser a que mais facilmente se entenderá com o novo presidente norte-americano. A eleição de Obama pode ajudá-la a eleger-se, se ela souber valer-se disso.

A QUESTÃO É: que política Obama adotará, em relação a Israel?

Jerusalém está preocupada, mas as autoridades consolam-se – e consolam a opinião pública – com a idéia de que (como se diz em Israel) "o diabo não é tão ruim quanto parece". O novo Congresso, nos EUA, é diferente do anterior, no que tenha a ver com o equilíbrio do poder, mas teme, exatamente como o anterior, o poder do lobby pró-Israel. Sim, a influência dos Evangélicos Sionistas foi reduzida, mas o AIPAC (American Israel Public Affairs Committee) está bem vivo e continua a chutar canelas, como sempre fez.

Sejam quem forem o Secretário de Estado e demais ministros, o primeiro-ministro de Israel continuará com acesso direto garantido ao Salão Oval. O novo ministro da Casa Civil, que leva um coruscante nome israelense, Rahm Immanuel (Rahm significa "alto"; Immanuel, "Deus está conosco"), é filho de um veterano do Irgun que facilmente se identificaria hoje como "ex-terrorista". Rahm foi educado em lar judeu, fala hebraico e acorreu em socorro do exército de Israel durante a primeira Guerra do Golfo.

Não sei o que pensa sobre o conflito Israel-Palestina, mas ele não impedirá que o primeiro-ministro de Israel tenha contato direto com o presidente dos EUA.

Se houver mudança, será provavelmente lenta e gradual. O que não implica que não venha a ser muito significativa.

Não há qualquer possibilidade de avanço no processo de paz entre Israel e Palestina, se os EUA não pressionarem o governo de Israel. Tem sido assim há décadas e continua a ser, hoje.

Todos os presidentes dos EUA, depois de Dwight Eisenhower, tiveram medo de pressionar Israel. Os que tentaram, como Richard Nixon no início do mandato, logo desistiram e recuaram. A única exceção foi Bush-Pai, ou, melhor, seu Secretário de Estado, James Baker, mas aquela pressão (exercida no bolso de Israel) não durou muito.

Não é preciso que a pressão seja brutal – se os EUA decidirem pressionar Israel. Pode ser pressão suave, desde que seja firme e constante, um tipo de atitude que parece combinar com o temperamento de Obama.

Se o novo governo dos EUA decidir reavaliar os interesses dos EUA no Oriente Médio, e concluir que a paz entre árabes e israelenses é necessária para atender àqueles interesses e para promover uma nova política norte-americana pós-Bush, então, nesse caso, Barack Obama terá de dizer isso ao(a) primeiro(a)-ministro(a) de Israel. Em seguida, que o(a) mande suspender imediatamente a construção de novas colônias israelenses ilegais. E que inicie nova rodada de negociações – dessa vez não para perder tempo e discursos, mas para chegar a um acordo sério em 2009.
Muitos israelenses agradecer-lhe-ão por isso. É bem provável que nosso(a) futuro(a) primeiro(a)-ministro(a) também lhe seja grato(a), no fundo do coração,
Barack Obama fará isso? Barack Obama pode fazer isso?
Só há uma resposta possível: "Sim, ele pode!"

* URI AVNERY, 8/11/2008, "Yes, you can!", em Gush Shalom [Grupo da Paz], na internet em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/%0Bavnery/%0B1226155650/. Tradução de Caia Fittipaldi. Copyleft. Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte.
Colaboração da amiga Verinha.

Um comentário:

O TERROR DO NORDESTE disse...

Fonte:http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/