17/11/2008
Almir Ribeiro
O último inverno foi marcado por notícias alarmantes de uma crônica crise alimentar em escala global. Manchetes diárias e reportagens incessantes tratavam do assunto como uma epidemia fora de controle, denunciando o aumento generalizado dos preços dos alimentos e alertando para um iminente risco de desabastecimento global. Especialistas foram mobilizados para comentar a crise e não faltaram autoridades a propor soluções próximas de suas conveniências nacionais.
Passaram-se somente alguns poucos meses e as notícias apocalípticas sumiram do noticiário. Cederam espaço à atual crise financeira global, que roubou as atenções mundiais a ponto de a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) lançar o apelo mundial "Não esqueçam a fome nem a crise dos alimentos", tentando reintroduzir e assunto na agenda política mundial.
Sem minimizar a gravidade das atuais turbulências financeiras, é um fato revelador a maneira silenciosa como passou a ser tratada a crise de alimentos na mídia internacional. O repentino desinteresse pelo assunto poderia sugerir que o problema da escassez tenha sido superado, o que infelizmente não é verdade. Mais razoável é supor que até então o assunto fora tratado na mídia de forma superficial e espetaculosa. E de forma oportunista e até irresponsável por muitas autoridades.
No auge da crise, enquanto o noticiário especulava sobre a oferta mundial de alimentos, foram poucos os formadores de opinião que associaram os indícios de escassez ao aumento da demanda mundial, devido à elevação dos padrões de vida dos países emergentes. A razoabilidade desse argumento confirma-se agora, em novembro, com a divulgação de previsões da FAO de produção recorde de cereais em 2008, suficiente para cobrir sua demanda no curto prazo e ajudar a repor as reservas mundiais. Igualmente, as análises subjugavam a influência da elevação recorde dos preços do petróleo nos custos de produção e transporte dos alimentos. Essa relação ficou evidente com o subseqüente recuo dos preços do barril a partir do fim do inverno, que se fez acompanhar por uma redução correspondente no preço das commodities agrícolas.
Há motivos de sobra para se considerar que as causas da crise de alimentos não se relacionam somente com capacidade de oferta, como especulava o noticiário. “Na América Latina e Caribe o problema da fome está relacionado com o acesso e não com a disponibilidade de comida", ponderou o representante regional da FAO, José Graziano da Silva. Ele concorda com a posição do presidente Lula de que esse flagelo mundial decorre das insuficiências de renda no terceiro mundo muito mais do que das dificuldades na oferta mundial, que pode ser elevada de acordo com decisões políticas da comunidade internacional. E o IBGE acaba de divulgar estatísticas que legitimam o argumento presidencial, ao indicar que em 2008 o país terá uma safra recorde de 145,6 milhões de toneladas de grãos.
Não é tarefa simples resumir as causas do eterno problema da fome mundial, mas certamente os motivos da recente crise passam ao largo da histeria midiática de meses atrás. Foi um festival de oportunismo, onde não faltou quem elegesse os bio-combustíveis como vilões da crise. Com base no ineficiente programa norte-americano de produção de etanol à base de milho, o relator da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, declarou que os biocombustíveis são “um crime contra a humanidade”, enquanto Dominique Strauss-Kahn, diretor do FMI, classificou-os como “um problema moral” por contribuir para a escassez de alimentos nos países pobres. Criou-se assim uma cortina de fumaça que impediu uma discussão séria sobre algumas das verdadeiras causas da crise de alimentos.
Dessa forma, o Brasil, que sempre foi parte da solução no abastecimento mundial, foi impelido a uma posição defensiva, mesmo diante dos irrefutáveis dados de que tem aumentado consistentemente a exportação de alimentos sem deixar de investir em seu programa de bio-combustíveis. O chanceler brasileiro Celso Amorim classificou as críticas de “conclusões simplistas” voltadas a reforçar interesses protecionistas. “Ninguém na África deixou de produzir alimentos para produzir biocombustíveis. Não produziam alimento e continuam sem produzir porque os subsídios agrícolas da Europa e dos Estados Unidos impedem que isso ocorra”, opinou.
O problema do abastecimento mundial segue longe da solução, mas o surto midiático cessou antes que se pudesse fazer a discussão fundamental sobre a política de subsídios agrícolas praticados nos países desenvolvidos. Além de serem responsáveis pela manutenção de sistemas de produção ineficientes, os subsídios são a principal causa da distorção dos preços mundiais, sufocando a competição e impedindo o desenvolvimento da agricultura nos países pobres.
O fim do espetáculo televisivo da crise de alimentos representou o desperdício de mais uma grande oportunidade de se discutir e propor mecanismos eficazes de estímulo à produção de alimentos, um tema fundamental para a humanidade. É simbólico que tenha ocorrido logo na seqüência do impasse que culminou no aborto de um acordo comercial mundial na rodada de Doha, em junho. Lá também as discussões foram travadas justamente pela resistência dos países desenvolvidos em rever suas posições nos subsídios agrícolas. É lamentável admitir, mas a fome mundial parece incomodar somente mesmo os famintos.
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