domingo, 16 de novembro de 2008

UM TEMA AINDA ATUAL

Mesmo tendo sido este texto, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, escrito no ano de 2002, no seu livro O Teatro do Bem e do Mal, tenho como pertinente reproduzí-lo aqui, por entender ser o tema abordado bem atual. Afinal, nada, a não ser na hipótese de legítima defesa da Nação, justifica a guerra, o terrorismo( um pouco incoerente, não?).

O teatro do bem e do mal

Eduardo Galeano


Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que contribui com os mortos.

Os terroristas mataram, trabalhadores de cinquenta países, em Nova Iorque e em Washington, em nome do Bem contra o Mal. E em nome do Bem contra o Mal, o presidente Bush jura vingança: "Vamos eliminar o Mal deste mundo", anuncia.

Eliminar o Mal? Que seria do Bem sem o Mal? Não só os fanáticos religiosos necessitam de inimigos para justificar sua loucura. A indústria de armamamentos e o gigantesco aparato militar de máscaras, também necessitam de inimigos, para justificar sua existência, os heróis passam a ser monstros e os monstros heróis, segundo exigem aqueles que escrevem o drama.

Isso não tem nada de novo. O cientista alemão Werner von Braun foi mau quando inventou os mísseis V-2, que Hitler soltou sobre Londres, mas se converteu em bom no dia em que colocou seu talento a serviço dos Estados Unidos. Stálin foi bom durante a Segunda Guerra Mundial e mau depois, quando passou a dirigir o Império do Mal. Joghn Steinbeck escreveu nos anos da guerra fria: "Talvez todo o mundo necessite dos russos. Aposto que a Rússia também precisa dos russos. Talvez eles os chamem de americanos." Depois os russos ficaram bonzinhos. Agora também dissse Putin: "O Mal deve ser castigado".

Saddam Husseim era bom, e boas eram as armas químicas que usou contra os iranianos e os curdos. Depois, tornou-se mau. Já se chamava Satã Hussein quando os Estados Unidos, que viriam a invadir o Panamá, invadiram o Iraque porque o Iraque havia invadido o Kuwait. O Bush pai teve ao seu cargo esta guerra contra o Mal. Com o espírito humanitário e compassivo que caracteriza a sua família, matou a mais de cem mil iraquianos, civis em sua grande maioria.

Satã Hussein continua onde estava, mas este inimigo número um da humanidade caiu à categoria de inimigo número dois. O flagelo do mundo se chama agora Osama Bin Laden. A Agência Central de Inteligência (CIA) lhe ensinou tudo o que ele sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais "guerreiros da liberdade" contra o comunismo no Afeganistão. O Bush pai ocupava a vice-presidência quando o presidente Reagan disse que estes heróis eram "o equivalente moral dos Pais Fundadores da América". Hollywood etava de acordo com a Casa Branca. Nestes tempos se filmou Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons.Agora são maus, malíssimos, em tempos do Bush filho, treze anos depois.

Henry Kissinger foi um dos primeiros a reagir ante a recente tragédia. "Tão culpado como os terroristas são quem lhes dão apoio, financiamento e inspiração", sentenciou com palavras que o presidente Bush repetiu horas depois.

Se isso é assim, haveria de começar por bombardear Kissinger. O tornaria culpado por muitos mais crimes que os cometidos por Bin Laden e por todos os terroristas que do mundo. E em muito mais países: atuando a serviço de vários governos estadunidenses, brindou "apoio, financiamento e inspiração" ao terror do Estado na Indonésia, Cambodia, Chipre, Irã, África do Sul, Bangladesh e nos países sul-americanos que sofreram a guerra suja do Plano Condor.

Em 11 de setembro de 1973, exatamente 28 anos antes dos fogos de agora, ardia o palácio presidencial no Chile. Kissinger havia antecipado o epitáfio de Salvador Allende e da democracia chilena, ao comentar o resultado das eleições: "Não temos porque aceitar que uma país se faça marxista pela irresponsabilidade de seu povo."

O desprezo pela vontade popular é uma das muitas coincidências entre o terrorismo de Estado e o terrorismo privado. Para dar um exemplo, a ETA, que mata gente em nome da independência do País Basco, disse através de um de seus porta-vozes: "Os direitos não tem nada a ver com maiorias e minorias."

Em muito se parecem o terrorismo artesanal e o de alto nível tecnológico, o dos fundamentalistas religiosos e o dos poderosos, o dos loucos e o dos profissionais de unifome. Todos compartilham o mesmo desprezo pela vida humana: os assassinos de cinco mil e quinhentos cidadãos triturados sob os escombros das Torres Gêmeas que desabaram como castelos de areia seca, e os assassinos dos duzentos mil guatemaltecos, em sua maioria indígenas, que foram exterminados sem que jamais a televisão, nem os diários do mundo lhe dessem a menor atenção. Eles, os guatemaltecos, não foram sacrificados por nenhum fanático muçulmano, mas por militares terroristas que receberam "apoio, financiamento e inspiração" dos sucessivos governos dos Estados Unidos.

Todos os apaixonados pela morte coincidem também, em sua obsessão por reduzir a termos militares as contradições sociais, culturais e nacionais. Em nome do Bem contra o Mal, em nome da Verdade Única, todos resolvem tudo matando primeiro e perguntando depois. E por esse caminho, terminam alimentando ao inimigo que combatem. Foram as atrocidades de Sendero Luminoso, que, em grande medida, incubaram o presidente Fujimori, que com apoio popular considerável implantou um regime de terror e vendeu o Peru a preço de banana. Foram as atrocidades dos Estados Unidos no Oriente Médio que, em grande medida, incubaram a guerra santa do terrorismo de Alá.

Ainda que agora o líder da Civilização esteja exortando a uma nova Cruzada, Alá é inocente dos crimes que se cometem em seu nome. Finalmente, Deus não ordenou o holocausto nazista contra os fiéis de Javé, e não foi Javé quem ditou o massacre de Sabra e Chatila nem quem mandou expulsar aos palestinos de sua terra. Por acaso Javé, Alá e Deus não são simplesmente três nomes da mesma divindade?

Uma tragédia de enganos: já não se sabem quem é quem. A fumaça das explosões forma parte de uma cortina de fumaça muito maior que nos impede de ver. De vingança em vingança, os terrorismos nos obrigam a caminhar aos tombos. Vejo uma foto, publicada recentemente: numa parede de Nova Iorque, alguma mão escreveu: "Olho por olho, o mundo ficará cego"

A espiral da violência gera violência e também confusão: dor, medo, intolerância, ódio, loucura. Em Porto Alegre, no começo deste ano, o argelino Ahmed Ben Bella advertiu: "Este sistema que já enlouqueceu as vacas, está enlouquecendo a gente." E os loucos, loucos de ódio, atuam igual ao poder que os gera.

Um menino de três anos, chamado Luca, comentou estes dias: "O mundo não sabe onde está sua casa." Ele estava olhando um mapa. Podia estar olhando um noticiário.

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