Luiz Gonzaga Belluzzo, para CartaCapital.
Na assim chamada Era Dourada – entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 70 do século passado – conviveram em harmonia o crescimento rápido, a baixa inflação, reduzidas taxas de desemprego, aumento dos salários reais e integração das massas aos padrões modernos de consumo e convivência.
Na década dos 70, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre inflação e baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas “intervencionistas” e ao Estado do Bem-Estar tratou de atribuir o desarranjo à decrepitude das políticas e das práticas que buscavam controlar a instabilidade do capitalismo e impedir que o destino dos cidadãos ficasse à mercê das incertezas do mercado. Depois de 30 anos de desempenho brilhante – as economias capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. A Golden Age agonizava.
No limiar dos anos 80, a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos refletiu o desconforto das classes abastadas e médias com a estagflação. As cargas tributárias elevadas, o excesso de regulamentação e o poder dos sindicatos eram, sem dúvida, os responsáveis pelo mau desempenho das economias.
A famosa Curva de Laffer garantia que a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas neocorporativistas, diziam os ideólogos do neoliberalismo, criavam sérias deformações “microeconômicas”, ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços – nas taxas de câmbio, nos juros e nas tarifas.
Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos. Tal violação das regras de ouro dos mercados competitivos culminava na disseminação da ineficiência e na multiplicação dos grupos “predadores de renda”, que se encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.
Ainda nos anos 50, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas e do Estado de Bem-Estar, o libertarianismo de Friedrich Hayek e o monetarismo de Milton Friedman formaram a comissão de frente da ofensiva contra “os inimigos da liberdade econômica”. Para Hayek, o mercado é um processo de troca e de acumulação de informações e não um ambiente estático dotado de forças que o reconduzem ao equilíbrio. As intervenções do Estado são nefastas, pois só o processo de mercado torna possível a inovação nos métodos de produção e de organização, a partir do continuado fluxo de informações que surge da interação entre os indivíduos livres.
O importante nessa concepção é a ênfase na capacidade do mercado livre de empecilhos de mobilizar e fluidificar os recursos individuais. O corpo de propostas “reformistas” rotuladas de neoliberais está, portanto, comprometido com a ideia de que é preciso liberar as forças criativas do mercado. A renovação do capitalismo, em gestação desde o crepúsculo da era keynesiana, tinha o propósito de abrir caminho para a preeminência das relações entre indivíduos livres, dispostos aos objetivos do ganho monetário. Esta é a sociedade dos neoliberais.
Mas, na verdade, as reformas liberalizantes, empreendidas desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, trataram de mobilizar os recursos políticos e financeiros dos Estados nacionais para fortalecer os respectivos sistemas empresariais envolvidos na concorrência global. O Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Em sua obra maior, Civilização Material e Capitalismo, o historiador Fernand Braudel escreveu: “O erro mais grave (dos economistas) é sustentar que o capitalismo é um sistema econômico... Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje”.
Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos, as empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.
As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações comerciais, industriais e de serviços em geral. A cartilha neoliberal pretendia nos ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica capaz de aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do trabalho e gozar dos encantos da vida cosmopolita. A microeletrônica, a informática, a automação dos processos industriais, etc. prometem nos libertar das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O indivíduo livre pode trabalhar em casa e se tornar, além de patrão de si mesmo, um partícipe da prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia e transformação das formas de trabalho, estaria realizando essa maravilhosa promessa da modernidade.
Mas a realidade da globalização neoliberal foi outra. A individualização das relações trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de outras instituições que lidam com o assunto. O trabalho intensificou-se, sobretudo, entre os que se tornaram independentes das relações formais, os que negociam diariamente a venda de sua capacidade de trabalho nos mercados livres.
Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados e terceirizados. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a própria vida.
Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo que buscaram o Estado e sua força coletiva para limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda como submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.
Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e trabalhadores são inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade observadas no período que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70 – tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo “turbinado” e financeirizado, os frutos do crescimento concentraram-se nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
O projeto da autonomia do indivíduo está inscrito no pórtico da modernidade. Significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao outro. Opõe-se à submissão aos poderes – públicos e privados – que o cidadão não controla. A disseminação das formas mais agressivas de concorrência encontrou, até agora, pouca resistência em seu incessante trabalho de reduzir os “conteúdos” da vida humana às relações dominadas pela expansão do valor de troca. Mas pode se tornar intolerável para os indivíduos – ou para a maioria deles – a sensação de que o seu cotidiano e seu destino são governados pelas tropas de uma “racionalização” sufocante, destruidora do projeto de uma vida boa e decente.
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