sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A voz dos emergentes



Márcia Pinheiro

Valor Econômico - 25/09/2009

Diretor do Centro de Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o economista Javier Santiso, 40 anos, se diz um entusiasta do que chama de nova era da globalização não excludente. Segundo Santiso, que faz parte do Conselho para a Agenda Global do Fórum Econômico Mundial, o mundo passa por um processo histórico de transição, no qual as antigas classificações de centro e periferia perdem o sentido. Em outras palavras, os emergentes agora têm voz e suas práticas de políticas econômicas e sociais deveriam ser aplaudidas. A seguir, trechos da entrevista que Santiso concedeu ao Valor, por telefone, de Paris.

Valor: Desde a quebra do banco Lehman Brothers, muito se discutiu sobre se os países emergentes se descolaram ("decoupling") da crise que mais intensamente atingiu o Hemisfério Norte. Qual sua opinião?

Javier Santiso: Há dois pontos, que podem parecer um tipo de paradoxo. Em primeiro lugar, nunca gostei dessa ideia de "decoupling". Meu foco é outro. Vivemos em um mundo em transição, em que a noção de centro e periferia está cada vez menos relevante. Essas terminologias foram apropriadas para o século passado. Os Estados Unidos mantêm-se como a maior economia do mundo, mas vemos uma tremenda interconexão de fluxos entre mercados emergentes.

A crescente interconexão de fluxos de mercados emergentes, como o chinês e o brasileiro, é o fato novo que substitui antigos padrões de relações comerciais (na foto, os presidentes Lula da Silva e Hu Jintao, em Pequim)

Valor: O poder, então, não mais está apenas nos Estados Unidos, mas pulverizado entre outros países?

Santiso: Sim. Há outros atores com força, como China e Brasil. Há dez anos, ninguém discutia o poder e o futuro desses dois países, porque eram totalmente irrelevantes. Hoje, o que acontece na China é importante para a América Latina. Isso, por duas razões. Há um vertiginoso crescimento nas relações comerciais Sul-Sul. Neste ano, a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil. Também aumentaram os investimentos diretos, como os da Petrobras. Indiretamente, há o efeito chinês sobre o mercado de commodities. Se combinarmos esses dois pontos, e tendo em mente que 60% das exportações da região são de commodities, vemos a importância dessas novas relações. Nos anos 1970, o parceiro principal da região eram os Estados Unidos. Nos anos 1990, a Europa tornou-se um segundo pilar econômico. Agora, o terceiro pilar que emergiu para a América Latina é a Ásia, como a China, a Coreia do Sul e Cingapura. No ano passado, Cingapura abriu escritórios no México e no Brasil, em busca de oportunidades de investimento.

Valor: Pode-se dizer que o poder econômico está mais igualmente dividido entre países e regiões?

Santiso: Há maior difusão do poder econômico, mas a novidade são os emergentes, que se tornam atores relevantes na globalização. É muito importante notar o surgimento de novas multinacionais. Repentinamente, destacam-se Petrobras, Sadia, Vale, Gerdau, Embraer, que promovem grandes aquisições no exterior, tanto na América Latina, como nos países da OCDE. Ou a Índia, com a Tata, que anda comprando as joias da coroa no Reino Unido. Vivemos em um mundo onde há um reequilíbrio da riqueza das nações.

Valor: É um exagero dizer que a crise fortaleceu o papel dos BRICs (Brasil, Rússia, China e Índia)?

Santiso: Talvez seja melhor dizer que esse processo de transição, de reequilíbrio da riqueza, não foi interrompido pela crise. Obviamente, há emergentes mais atingidos. A Rússia é um exemplo, o México também está em recessão profunda, por sua forte ligação com a economia americana. E 100% dos países da OCDE estão em recessão. Incrível é haver crescimento em algumas regiões do planeta, como a China, que provavelmente crescerá 8% neste ano. Significa que a diferença de comportamento do produto interno bruto (PIB) da China e dos Estados Unidos será de 12 pontos porcentuais. Isso é formidável e único. Os vencedores, desta vez, são os emergentes.

Valor: O Fundo Monetário Internacional (FMI) está mudando, modernizando-se. Qual seria o próximo passo?

Santiso: Este é o desafio quando falamos de globalização não excludente. Precisamos encontrar formas de participação que incluam os países em todos os fóruns. Por isso tornou-se tão importante o encontro do G-20 em Pittsburgh, com a participação do Brasil, do México, da China, da Índia. Precisamos valorizar esses espaços de diálogo, mais democráticos e não-excludentes. Porque isso reflete mais claramente o que acontece no mundo.

Valor: Há muitos analistas céticos em relação aos avanços da supervisão e regulação dos mercados financeiros. Desde a eclosão da crise financeira mundial, os governos têm tomado medidas saudáveis para evitar futuras bolhas de ativos?

Santiso: Esta é muito mais do que uma crise financeira ou macroeconômica. Talvez a maneira como os economistas pensam deva ser reajustada. É interessante que os economistas estudiosos do entrelaçamento entre a economia e a psicologia estão sendo revitalizados. Esta crise é também um convite à humildade para os países da OCDE. Não só no nível acadêmico, mas na formulação de políticas. É vital observar as excelentes práticas que ocorrem nos emergentes. Deveríamos ficar felizes com algumas reformas, como as que ocorrem no Brasil. São políticas pragmáticas. Escrevi um livro sobre a política do possível, e não só a fundada em modelos e paradigmas. Outro caso interessante é o do Chile. Quantos países na OCDE estão praticando um keynesianismo nos moldes chilenos? O estímulo fiscal é feito graças à situação superavitária do país. É muito relevante que sejam capazes de fazer políticas anticíclicas.

Valor: Mas há analistas que dizem que a política do possível é muito pouco ambiciosa, e que o sonho deveria norteá-la.

Santiso: Países como México, Brasil e Chile, que na última década implementaram políticas graduais, com uma boa dose de continuísmo, são os mais resistentes, os mais bem-sucedidos. De nada adianta interromper boas políticas e jogar o bebê fora com a água. Se todo governo mudar radicalmente os rumos da economia, não haverá continuidade nem progresso. O pragmatismo foi a marca desses países a partir da década de 1980. Não é inteligente reinventar a roda a cada mudança de governo. Não dá para questionar, por exemplo, o controle da inflação no Brasil, iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso e mantido pelo presidente Lula. Outro excelente exemplo é o projeto de educação levado a cabo pela Coreia do Sul há décadas.

Valor: A questão do ambiente é crucial para os emergentes. Eles têm o direito histórico de poluir mais, por que estão em fase de desenvolvimento?

Santiso: O ambiente deve ser prioridade de todos os países. As regras para os que chegaram por último devem ser discutidas por todos, pois precisam mesmo se desenvolver. Novamente, os países desenvolvidos precisam adotar certo grau de humildade, de tal forma que todas as necessidades sejam equacionadas, respeitando-se a natureza.

Valor: E os casos da Venezuela e da Bolívia?

Santiso: Estão repetindo a fraseologia do passado. No final, perdem a oportunidade de ter um desenvolvimento mais sustentável. A Venezuela, por exemplo, nada avançou em termos de redução da desigualdade. Eles estão esperando que Godot resolva seus problemas.

Valor: Qual é sua avaliação sobre os programas compensatórios, como o Bolsa-Família?

Santiso: São inovações sociais que deveriam ser aplaudidas. Há críticas e fragilidades, claro, mas são a prova da capacidade da região de inovar em políticas. Os resultados são formidáveis em termos de inclusão e os custos não são tão elevados.

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