A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de não ser seletiva. O
cardápio de notícias apresentado diariamente à sociedade brasileira também pode ser recriminado por tudo, menos
pela repetição do prato principal. Refiro-me à Ação Penal 470, no linguajar
jurídico, e ao mensalão, no linguajar dos jornalões.
A depender da grande imprensa, o dia 2 de agosto de 2012 passa a ter mais
importância que o 7 de setembro de 1822 e, por isso, merece ser eternizado em
nosso calendário cívico como a verdadeira data da independência do Brasil.
É aqui que começa a seletividade monocórdia, a opção desabrida pelo que
merece ser visto como o início de uma nova era para os brasileiros: a imprensa
julgou o assunto antes do Supremo Tribunal Federal e espera deste nada menos que
a sua validação. Exarada a sentença nos noticiários das emissoras de rádio do
Sistema Globo de Comunicação, proferida repetidas vezes do alto da audiência de
que desfruta em todo o país o Jornal Nacional, da Rede Globo de
Televisão, impressa em alto relevo em capas, páginas coloridas e colunas de
fofocas que pretendem tratar de política da revista Veja, o carro-chefe
– um tanto avariado, é verdade – da Editora Abril, em tudo o foco é um só: a
Ação Penal 470 só desembocará em julgamento justo se dispensar o arcabouço
jurídico a ser brandido pelas diversas teses de defesa, e se desconsiderar os
aspectos técnicos mais comezinhos e indispensáveis a uma ação jurídica dessa
envergadura.
Dois golpes
Desde os últimos dias de julho parecemos estar vivendo aquela última semana de dezembro de todos os anos: retrospectivas para um só gosto. Explico: a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas não mais que as cenas que demonizem os réus, marquem suas frontes com ferro em brasa a insculpir a palavra “culpado”, imputem-lhes todas as iniquidades não republicanas e expiem o Himalaia de atos condenáveis que tão somente nossa legislação eleitoral poderia conter.
As retrospectivas do Jornal Nacional e da rádio CBN, ambos veículos
de grande audiência, pertencem à família Marinho. A mais chamativa retrospectiva
dos veículos impressos tem a chancela da Folha de S.Paulo, pertencente
à família Frias. E os mais variados “renascimentos” do mensalão têm como sala de
obstetrícia as redações da Editora Abril, de propriedade dos Civita. É
impressionante como o monopólio dos meios de comunicação do Brasil é capaz de
competir na batalha por corações e mentes em condições de paridade com o Poder
Judiciário e sua mais elevada instância, o Supremo Tribunal Federal.
Chama a atenção como a parcialidade no noticiário pode ser nociva à própria
ideia de democracia. E como o pensamento único pode ser danoso, além de cruel, à
realização do ideal de justiça. E a AP-470 deve merecer, em futuro não muito
distante, alentadas teses acadêmicas sobre a natureza e amplitude da influência
que os meios de comunicação podem ter em um país que se diz moderno e, no
entanto, se comporta de maneira partidarizada e sempre contundente graças ao
elevado estado de concentração e aos efeitos pernósticos de um monopólio cada
vez mais insustentável.
Enquanto isso, agentes do Direito, em especial do Ministério Público,
sentem-se insuflados pelos meios de comunicação a subverter o real significado
de eventos históricos de nossa tumultuada vida política. Para ilustrar à
perfeição, encontramos ampla repercussão na imprensa dessa injuriosa frase à
história do Brasil, proferida pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel:
“O mensalão é o maior escândalo da história do Brasil”. Será mesmo? Ou por trás
de tão absurda declaração não existe a vaidade escancarada de se sentir
partícipe de evento de tão grande magnitude?
Ainda bem que o ilustre procurador não é autor de livros didáticos de
história usados por estudantes do ensino fundamental; do contrário, milhões de
crianças e jovens aprenderiam que o processo em vias de julgamento no STF
eclipsou em importância nada menos que o escândalo de 1954, urdido por Carlos
Lacerda (provavelmente o melhor aprendiz de Nicolau Maquiavel da política
brasileira recente) para derrubar Getúlio Vargas e que, ao final, custou-lhe a
vida, a eternização da expressão “mar de lama” e a beleza poética da
carta-testamento do presidente suicida, certamente um dos mais importantes
documentos políticos da história do Brasil.
Considerar o mensalão “o maior escândalo da história” é transformar os dois
golpes de Estado ocorridos em 1955, ainda na esteira do suicídio de Vargas, em
não mais que tempestades em copo d’água.
Dever divino
Poderia aproveitar o gancho e discorrer por alguns outros episódios que
facilmente seriam impostos pelos fatos para ganhar a medalha de ouro, o lugar
máximo do pódio de nossas crises e escândalos políticos: a chamada Intentona
Comunista dos idos de 1935; o golpe militar que apeou do poder o presidente João
Goulart e instaurou uma ditadura cruel (nada de “ditabranda”, como
preferem alguns) que ceifou 20 anos da vida brasileira, exilou intelectuais,
podou a criação artística, instaurou julgamentos sumaríssimos nos famigerados
DOI-CODIs; e as imagens ainda vívidas da esteira de escândalos que envolveram
personagens carimbados de nossa história recentíssima, como Fernando Collor de
Mello, Pedro Collor, PC Farias, os Jardins da Babilônia recriados na Casa da
Dinda, o Fiat Elba amarelo, a Operação Uruguay – todos episódios que culminaram
com o primeiro impeachmentde um presidente do Brasil, legitimamente eleito e
legitimamente destituído do cargo.
Quer dizer, então, que nenhum desses eventos nefastos e seus terríveis
desdobramentos não passaram de meros exercícios mentais, meros esboços de
escândalos e crises políticas ante a AP-470? Sim, mas na abalizada visão
jurídica do procurador-geral da República Roberto Gurgel tudo isso foi, vamos
dizer, fichinha. A tese do senhor procurador-geral é por demais impertinente e
falseia a história como um todo – porque o que falseia a parte, falseia o
todo.
Nada contra o procurador-geral se equivocar. Nada mais natural, nada mais
humano. Mas não deixa de ser curioso observar que esse seu equívoco de
julgamento é realmente fichinha se comparado aos longos três anos que Sua
Excelência consumiu para se posicionar ante os robustos resultados apresentados
pelas operações da Polícia Federal de nomes Vegas e Monte Carlo, e que
culminaram na prisão do meliante-mor Carlinhos Cachoeira, na cassação do mandato
do senador Demóstenes Torres, e que deve levar ao fio da navalha o mandato do
governador goiano Marconi Perillo, além de manchar reputações de personagens de
menor projeção política.
O problema é a forma entusiástica com que a grande imprensa encampou a
declaração do procurador-geral: repercutiu em primeiras páginas, foi à escalada
dos telejornais noturnos, recebeu o destaque que as frases grandiloquentes
costumam ganhar por parte dos ditos colunistas de política. Mas não ficou por
aí. Com essa frase sobre “o maior escândalo da história” se turbinou na mídia
uma nova fase do game “Detonando o mensalão”: retrospectivas, operações Lázaro
(aquela que ressuscita mortos-vivos políticos) e se colocou, do cabo à lâmina, a
faca nos pescoços de nossos supremos julgadores, os integrantes do STF.
O poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 d.C.) foi
contundente quando afirmou: “Ousa saber! Começa!” (Sapere aude!)
E ousar saber e começar nada mais é que o irrecusável convite a que saiamos
da estagnação mental e partamos para o conhecimento das leis, deixando ao largo
todas as pressões – desde aquelas que gritam mais que mil comícios do III Reich
nazista até as que, ao amparo da liberdade de imprensa, exercem seu divino dever
de usar a liberdade de pressão para fazer valer suas teses, ideologias e mesmo
anseios tardios por vingança, aquele velho prato que na literatura anglo-saxã
sempre deveria ser servido frio.
[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]
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