A noção de que se trata do “maior escândalo da história” ficou mais difícil de sustentar depois da revelação de que, ouvidas mais de 300 testemunhas, da acusação e da defesa, não apareceu ninguém para descrever as célebres “compras de voto”, “mesadas” ou outras formas de comércio político que Roberto Jefferson descreveu em junho de 2005.
O mesmo Jefferson, na verdade, deixou de sustentar essa versão em depoimentos posteriores, menos barulhentos e mais consistentes, que prestou à Polícia e a Justiça nos anos seguintes. Num deles, o deputado do PTB refere-se ao mensalão como ”criação mental.“ Disse, explicitamente, que “não envolvia” troca de apoio entre o Planalto e o Congresso e se destinava a financiar a campanha municipal de 2004.
A verdade é que depois do início do julgamento alguns casos se revelaram particularmente humilhantes para a acusação. Estou falando do ex-ministro, ex-deputado e líder sindical bancário Luiz Gushiken. Durante sete anos Gushiken frequentou os jornais e tele jornais como um dos suspeitos. Sua foto de cavanhaque e olhos puxados estava em toda parte, as acusações também. Em 2005, seu depoimento a CPI foi interrompido por comentários maliciosos de parlamentares da oposição, que dificultavam a conclusão de qualquer raciocínio. Parte do plenário espumava de felicidade.
Revelou-se, ontem, no Supremo, que embora tivesse acesso a documentos oficiais que poderiam ser úteis a Gushiken, a acusação recusou-se a fornecê-los a seus advogados. Com isso, o réu foi prejudicado no direito de apresentar uma boa defesa. Feio, né?
O fato é que o julgamento tem permitido a apresentação serena de mais de uma versão, interrompendo um ambiente de linchamento que acompanhou o caso desde o início.
E é para voltar ao linchamento que começam a circular novas versões e opiniões sobre o caso, sobre a Justiça brasileira, sobre a impunidade nacional e assim por diante.
O raciocínio é simples: não importa o que for provado nem o que não for provado. Caso os 38 réus não sejam condenados de forma exemplar, quem sabe saindo algemados do tribunal, o país estará desmoralizado, nossa Justiça terá demonstrado, mais uma vez, que só atua a favor da impunidade, que todos queremos pizza e assim por diante.
Parafraseando Napoleão no Egito, tenta-se vender uma empulhação. Como se os 512 anos de nossa história contemplassem os 190 milhões de brasileiros a partir das estátuas de mármore da sede do Supremo em Brasília.
Vamos deixar claro. Ninguém quer a impunidade. Todo mundo sabe que o abuso do poder econômico é um dos principais fatores de atraso de nosso regime democrático. Leva a corrupção e desvia os poderes públicos de seus deveres com a maioria da população.
Não é difícil reparar, porém, numa grande hipocrisia. As mesmas forças que sempre se beneficiaram do poder econômico, da privatização da política e do aluguel dos governos são as primeiras a combater toda tentativa de reforma e de controle, com o argumento de que ameaçam as liberdades exclusivas de quem tem muito patrimônio para gastar em defesa de seus interesses.
Denunciam o mensalão hoje mas fazem o possível para que seja possível criar sistemas semelhantes amanhã. Não por acaso, há dois mensalões com um duplo tratamento. O dos mineiros, que é tucano, já foi desmembrado e ninguém sabe quando será julgado. Já o do PT, que é mais novo, e deveria ceder passagem aos mais velhos, é o que se sabe.
Este ajuda a demonstrar a tese tão cara à defesa de que a dificuldade principal não se encontra no mensalão mas nos interesses políticos que os acusados defendem e representam. Interesses diferentes tem tratamento diferente, concorda?
O principal argumento para o linchamento é provocar uma parcela da elite brasileira em seu ponto fraco – o complexo de inferioridade em relação a países desenvolvidos. O truque é falar que sem uma pena severa nem condenações “exemplares” (exemplo de que mesmo?) vamos confirmar nossa vocação de meia-republica, um regime de bananas, com uma semi-desigualdade entre os cidadãos, onde a população não sabe a diferença entre público e privado.
Coisa de antropólogo colonial em visita a terras de Santa Cruz. Por este raciocínio, num país tropical como o nosso, não se deve perder tempo falando em “prova”, “justiça,” ”fatos”, “testemunhas”. Muito menos em “direitos humanos,” essa coisa que “só serve para bandidos”, não é mesmo. Somos atrasados demais para ter atingido esse ponto. Sofremos de um mal maior, de origem.
O que existe, em nossa pequena aldeia brasileira, é uma “cultura” de país pobre, subdesenvolvido, sem instrução. É ela que a turma do linchamento acredita que precisa ser combatida e vencida. Por isso o julgamento do mensalão não é um “julgamento” nem os réus são apenas “réus.”
São arquétipos. São “símbolos” e não dispensam verdades comprovadas para serem demonstrados. Mas se é assim, seria melhor chamar o Carl Young em vez deo Ayres Britto, não?
No julgamento de símbolos, basta a linguagem, o verbo, a cultura, os poetas, ou em tempos atuais, a mídia – é com ela que se constroem e se desfazem símbolos e mitos ao longo da história e mesmo nos dias de hoje, não é mesmo?
Dane-se se as provas não correspondem ao que se espera. Para que se preocupar com testemunhas que não repetem o texto mais conveniente ?
O que importa é dar uma lição aos selvagens, aos incultos, aos despreparados.
Como se houvessem civilizados. E aqui é preciso refletir um pouco sobre essa visão do Brasil. É muito complexo para um país só.
Qualquer antropólogo que já passou um fim de semana nos Estados Unidos sabe que ali se encontra um dos países mais desiguais do planeta, onde os ricos não pagam impostos, os pobres não têm direito a saúde e as garantias formais da maioria dos assalariados são exemplo do Estado mínimo. A Justiça é uma mercadoria caríssima e as boas universidades estão reservadas para os gênios de qualquer origem e os milionários que podem pagar mensalidades imensas e ainda contribuem com uma minúscula fatia de suas fortunas para garantir um sistema em que o topo garante ingresso para seus filhos e netos – com aplauso de deslumbrados tropicais pelo sistema.
Quem se acha “europeu” poderia abrir as páginas de A Força da Tradição, onde o historiador Arno Meyer descreve a colonização da burguesia revolucionária – da liberdade e da igualdade – pela aristocracia que moderou ímpetos mais generosos e democráticos, chamados fraternos, dos novos tempos.
Fico pensando se os pensadores americanos acordam de manhã falando em sua meia-república depois de pensar na força Tea Party. E os europeus, incapazes de olhar para o horror e a miséria de sua crise contemporânea? Também acham que tem um problema em sua “cultura”?
Tudo isso para dizer que o problema não é cultura, não é passado, mas é a luta do presente.
E aí não é possível deixar de notar uma grande coincidência. Vamos esquecer os banqueiros e publicitários dos “núcleos” operacional e financeiro da denúncia. Vamos para o principal, o “núcleo político.”
Há quatro décadas, José Dirceu foi preso sem julgamento e, mais tarde, iniciou uma longa jornada no exílio e na clandestinidade. Não lhe permitiam circular pelo país nem defender suas ideias em liberdade. O mesmo regime que o perseguia suprimiu eleições, transformou a justiça num simulacro, cassou ministros do Supremo, instalou a censura a imprensa e convocou um admirador de Adolf Hitler, como Filinto Muller, para ser um de seus dirigentes políticos.
Civilizado, não? Meia-república? Ou o país deveria ser transformado numa ditadura porque lideres estudantis, como Dirceu, defendiam um regime como o comunismo cubano?
José Genoíno foi preso e torturado. Queria fazer uma guerrilha da escola maoísta – popular e prolongada. Imagine a farsa do tribunal militar que o condenou – com aqueles oficiais que cobriam o rosto, na foto inesquecível do julgamento da subversiva Dilma Rousseff, mas não deixavam de cumprir o figurino do regime, ilustrado por denuncias fantasiosas, de tom histérico.
Gushiken, a quem não forneceram provas na hora necessária, era do tempo em que a polícia vigiava sindicatos, perseguia dirigentes – achava civilizado dar porrada, desde que não ficassem marcas de choques elétricos.
Esta turma merece mesmo ser chamada de “núcleo político” do caso. Está no centro das coisas de seu tempo. É o centro do átomo.
Ninguém se importa com banqueiros do Rural, vamos combinar. Nem com publicitários. Se forem inocentados, terão direito a um chororô de fingida indignação e estamos conversados.
A questão está nos “políticos”.
Sabe por que? Porque dessa vez “os políticos” já não podem ser silenciados na porrada.
Quatro décadas depois, cidadãos como Genoíno, Dirceu, Gushiken, e seus descendentes políticos, não são conduzidos a tribunais militares. Podem apresentar sua versão, defender seus direitos. Resta saber se serão ouvidos e considerados. Ou se há provas e argumentos para condená-los, sem perseguição política.
Vídeo por vídeo, não há nada contra os réus que se compare a tentativa de suborno que serviu de prova da Operação Satiagraha – anulada pela Justiça. Também não há relação de contribuições a políticos tão clara como a Castelo de Areia, com dezenas de milhões desviados, nome após nome – anulada pela Justiça. Para voltar a um passado um pouco mais distante. Nunca se viu um escândalo tão grande como o impeachment de Collor, com troca de favores e obras públicas registradas em computador – prova anulada pela Justiça.
Desta vez, os réus têm uma chance. É isso que irrita a turma do linchamento. Imagine quantas provas de inocência não sumiram no passado. Quantos depoimentos não foram redigidos e alinhavados pela pancada e pela tortura.
Hoje, os mesmos réus e seus descendentes políticos têm direito a ser ouvidos. Representam. Seu governo tem votos. O partido é o único que população reconhece.
Alguns acusados do núcleo contam com advogados que não cobram menos de R$ 100 000 só pela primeira consulta – sem qualquer compromisso posterior. Pois é. O justiça brasileira continua escandalosamente cara, exclusiva, desigual. É feita para brancos e muito ricos. Mas os bons advogados deixaram de ser monopólio do pessoal de sempre. Tem gente nova no clube. O país não mudou muito. Só um pouquinho.
É isso que a turma do linchamento não suporta.
Fonte: Época
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