segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A ONDA VERDE E A SUBSTITUIÇÃO DA POLÍTICA PELA MORAL


Foi bonita, entusiasmada e criativa a campanha que se armou em torno de Fernando Gabeira para prefeito do Rio. Pelo papel que cumpriu a blogosfera e pelas novidades na sua composição, teria sido de se esperar um balanço mais detido da candidatura. Não aconteceu, talvez pelo excesso de proximidade emocional, talvez pela falta de instrumentos de quem poderia fazê-lo. Em todo caso, este blogueiro – que por falta de afinidade política nem passou perto de sentir que podia apoiar, mas que quiçá no fundo torcesse secretamente pela vitória de Gabeira – oferece aqui seus dois centavos de análise. A onda verde foi a mais recente articulação de um fenômeno (que pode ter encarnações “legais” e “bacanas”, como Gabeira) próprio da política brasileira dos últimos anos: a constituição de uma frente de classe média que quer reescrever a política com o vocabulário da moral.

Poucas vezes no Brasil se viu tanta insistência em reduzir a diferença política entre dois candidatos a uma diferença ética. A campanha de Gabeira praticamente não falou de outra coisa senão da superioridade moral de seu candidato. Assinalo isso não para negar que esta realmente exista – é evidente que é possível fazer contraposições éticas entre Gabeira e Paes --, mas para sublinhar que a campanha de Gabeira trabalhou o tempo todo com a convicção de que esta contraposição era suficiente, não só no terreno eleitoral mas também no político. Não percebeu quão extremamente classe média é esse valor, e na maioria das vezes se irritava ante a simples análise da longitude geográfica do seu candidato.

Esta desqualificação do outro lado não se limitava à figura de Paes, mas incluía também o seu eleitorado, frequentemente caracterizado como comprável e sujeito ao fisiologismo, por oposição à “metade” que supostamente seria “consciente” no Rio. Este estereótipo sofreu um duro golpe dos números no domingo, ao se revelarem em Copacabana taxas de abstenção que rondavam os 30%, em muito superiores às observadas na Zona Oeste. A “metade” “consciente” do eleitorado carioca brindou seu candidato com taxas recorde de abstenção, num fenômeno que este blog ainda gostaria de ver melhor analisado. Porque o número chave não é o “menos de um Maracanã lotado” que foi a diferença entre Paes e Gabeira. O número chave para a análise são os quase vinte Maracanãs que se abstiveram. Calculando-se proporcionalmente a abstenção no território verde (no eleitorado de Gabeira), seriam, na verdade, uns trinta Maracanãs.

Discordo de gente inteligente que minimizou ou racionalizou fenômenos como o encontrão de Gabeira com a vereadora Lucinha ou a desastrada declaração sobre a feijoada e o samba. Desculpe, mas se você não vê nesses episódios algo que revela uma visão de mundo, é melhor ajustar a lente. Gabeira não disse só “analfabeta política” para caracterizar uma pessoa, o que seria perfeitamente aceitável. Ele associou esse analfabetismo a uma visão “suburbana” da política. É verdade que o fez numa sucessão de orações subordinadas, mas o vínculo causal estava explícito: analfabeta porque suburbana, não adianta negar. Negá-lo é como negar má intenção no comercial de Marta contra Kassab – só é possível com viseira. Que o estopim tenha sido a proposta de um aterro sanitário em Paciência só acrescentava involuntária ironia ao fato.

Da mesma forma, a campanha de Gabeira não compreendeu bem o imenso faux-pas que foi a declaração de que certos sambistas iriam a um evento com Paes por causa da feijoada. Não se trata de discutir se Paes seria capaz de suborno ou se haverá gente que se submeta a isso. A resposta é afirmativa nos dois casos. No entanto, o X da questão não era esse, e sim o singelo fato de que não se insulta o samba e a feijoada assim. O objeto da injúria não era Paes, portanto não adianta retrucar com a cantilena da diferença moral entre os dois candidatos. Os objetos do insulto eram duas instituições supra-partidárias, simbólicas e, sim, sagradas para muita gente. Não se tratava ali de deslizes ou tropeços, mas de episódios reveladores -- que a coalizão verde, por ter refletido pouco sobre sua origem de classe, talvez tenha subestimado.

Os partidos políticos estão tão estraçalhados no Rio de Janeiro que foi possível que um candidato apresentasse como virtude ética o plano de costurar o segundo turno e depois governar sem conversar com os partidos (entendendo-se aqui suas lideranças, candidatos a prefeito no primeiro turno, vereadores eleitos etc.). A proposta não era inédita, mas a compreensão dela como superioridade moral o era. Gabeira se propôs a conversar “com o eleitorado” dos outros candidatos diretamente, sem mediação. A mensagem ética, calculou-se, era suficiente. No domingo, enorme fração do eleitorado respondeu ficando em casa. Ou indo à praia. Ou viajando para a região dos Lagos. Ou indo à feijoada e ao samba porque, como se sabe, na Zona Sul também se faz feijoada e samba, e dos bons.

O problema com a redução da política à moral é a impossibilidade de realizá-la. Você pode se perguntar pelas relações entre esses dois termos, mas não conseguirá reduzir um ao outro. Pela milésima vez: isso não significa que não haja diferença ética entre Gabeira e Paes. É claro que há. Significa que no momento em que você decide responder todas as perguntas políticas com uma afirmação ética, você dinamita a própria ética. “Ser mais ético” é uma locução defectiva como o verbo “inovar”. Se você inova, há que dizê-lo o outro. Quando você é o candidato “da ética”, não pode fazer desse plus a sua única fonte de diferença política, sob o risco de abandonar a própria ética. Afinal de contas, se há algo que caracteriza o sujeito ético é a permanente suspeita de que não está sendo ético o suficiente.

Como dizemos por aqui, you can't have it both ways: se toda a sua diferença política se ancora na diferença moral, você não pode se recusar a aplicar a si mesmo o teste ético pelo qual o outro candidato não passaria – mesmo que o outro seja o candidato das milícias, do establishment da corrupção e do oportunismo. Ao contrário da política, a ética não é uma prática de trocas negociadas.


PS: Para uma avaliação da importância e também do limite da Onda Verde, considere-se os números claramente: dos 4,5 milhões de eleitores, quase 1 milhão se absteve. Dos 3,5 milhões, mais 4,8% votou nulo e 2% em branco. Dos restantes 3,3 milhões, Gabeira obteve 49%. Trata-se, portanto, de 36,5% do eleitorado, um número estupendo, mas bem mais próximo de “um terço do Rio” que de “metade do Rio”. É um número que merece ser comparado ao “piso / teto” de Marta Suplicy em SP, não por equivalência entre as duas pessoas, mas para se entender a política de alianças possível no Brasil hoje.

PS 2: Merece um super parabéns a iniciativa do amigo Pedro Doria em favor de seu candidato. Foi mais uma bela contribuição do seu blog à política. Que o amigo tenha cometido -- sem maldade, claro -- a injustiça de me atribuir "ojeriza irracional" ao Gabeira (numa tarde em que eu aterrizava em Georgetown, a convite de Bryan McCann, para palestrar analítica e elogiosamente sobre Gabeira!) não mudou em nada minha admiração pela dedicação do Pedro à candidatura em que acreditou e que ajudou a construir.

PS 3: Este blog completou 4 anos no dia 28 e o blogueiro completa 40 hoje. Sobre os poderes cabalísticos do 4, claro, Jorge Luis Borges escreveu um belo relato.

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