segunda-feira, 2 de março de 2009

A BRUTALIDADE NA HORA DO ALMOÇO

1 DE MARÇO DE 2009


Referências a estupros e cenas de pedofilia são os exemplos mais bem acabados da nova fórmula da indigência televisiva oferecidas aos adultos e às crianças. Muitos dos quais, infelizmente, divertem-se com a desgraça alheia.

Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Carta Maior*


Se não é a barbárie, estamos perto. Em plena hora do almoço, a TV Itapoan de Salvador, afiliada da Record, transmite o programa Se liga Bocão, apelido de José Eduardo, o apresentador. Numa quarta, dia 21 de janeiro, havia na tela uma criança em movimentos sexuais com um adulto. Na semana seguinte um homem vítima de ato violento, com fortes dores, agonizava deitado numa maca. Os relatos são do repórter Jair Fernandes de Melo, publicados no jornal A Tarde, da Bahia.

Há mais. Closes de pessoas mortas, no chão, são repetidos à exaustão, a pedido do apresentador. Jovem detido pela polícia com pequena quantidade de maconha é colocado contra a parede pela polícia e pelo repórter do programa que repete oito vezes a mesma pergunta: ''Onde você comprou a droga''. E ouve oito vezes a mesma resposta: ''é para o meu consumo''.

Cenas assim não são exclusividade do ''Bocão''. Em Salvador, há um concorrente forte na exploração da desgraça alheia: é o Na Mira, da TV Aratu, retransmissora do SBT. Um modelo de programa que se espalha por várias cidades brasileiras como Recife, Natal e Fortaleza. Lá estão no ar, diariamente, os justiceiros eletrônicos. Eles acusam, julgam e condenam quem quer que seja, ao vivo, sem nenhum escrúpulo, passando por cima das leis e da ética.

As grandes rede nacionais já fizeram isso. Basta lembrar o Aqui Agora, do SBT; o Brasil Urgente da Bandeirantes; o Cidade Alerta, da Record; o programa do Ratinho também na Record e no SBT e mesmo o Linha Direta, da Globo. Mas recuaram. Alguns saíram do ar, outros mudaram de perfil. Seguem ainda sensacionalistas, mas não mostram mais o corpo no porta-malas do Chevette, só mostram o Chevette, conforme me disse, com uma boa dose de cinismo, um experiente diretor de telejornalismo.

Esse recuo não foi motivado por qualquer problema de consciência. Longe disso. Foi, isso sim, resultado de ações de setores organizados da sociedade que passaram a pressionar as emissoras de variadas formas. As duas que surtiram mais efeitos pegaram os concessionários dos canais de TV pelo bolso e pela Lei. No primeiro caso mostrando aos anunciantes como era contraproducente anunciar em programas desse tipo. Destacou-se nessa tarefa a campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania, impulsionada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e apoiada por várias organizações da sociedade.

Uma das emissoras chegou a ameaçar com a possibilidade de um processo o coordenador da campanha, deputado Orlando Fantazzini. Alegava que ele estava se imiscuindo indevidamente numa relação entre empresas privadas, esquecendo sua condição de operadora de uma concessão pública.

No segundo caso, acionando o Ministério Público através de manifestações que mostravam como esses programas violavam as leis vigentes no país. Um deles, da Rede TV, apresentado por João Kleber foi tirado do ar numa inédita decisão judicial e no seu lugar, durante 30 dias, foram exibidos programas produzidos por entidades defensoras dos direitos humanos, sem que a audiência da emissora caísse, é bom que se diga. Ao contrário, em alguns dias até aumentou, desmentindo o mantra repetido pelos radiodifusores segundo o qual o público gosta mesmo é de baixarias.

Se em nível nacional esses programas encolheram ou desapareceram, regionalmente prosperaram, como mostram os exemplos do parágrafo inicial. E tornaram-se campeões de audiência, tratando de dramas que ocorrem nas próprias cidades de onde são feitas as transmissões, apresentados com sotaques e personagens mais familiares aos telespectadores. É essa a primeira explicação para o sucesso de público, ainda que parcial. Há outras, mais complexas e mais gerais que valem para todo o ''mundo cão'' explorado pela TV brasileira.

Em primeiro lugar a precarização do serviços públicos, mal crônico brasileiro agravado pelas políticas neoliberais ampliadas pelos governos tucanos. Sem ter no Estado quem ouça e atenda às suas demandas, as pessoas - muitas em desespero - apelam para os chamados comunicadores eletrônicos. Dão a eles grande audiência na medida em que acompanham os programas na expectativa de ver seus problemas resolvidos. Algumas até conseguem uma cadeira de rodas ou a internação num hospital. São as que estão em situações mais trágicas ou bizarras, capazes de prender a atenção do telespectador garantindo ao programa patrocínios e merchadisings. As demais - a grande maioria - são dispensadas ou simplesmente ignoradas.

A receita do sucesso de audiência se completa com a fórmula usada para elaborar os conteúdos dos programas. A base é a seguinte: tratar de temas relativos à natureza humana em geral, capazes de ser compreendidos por qualquer indivíduo sem nenhum esforço. E quais são eles: sexo e violência. São assuntos que dizem respeito à perpetuação da espécie e à sobrevivência individual sensíveis a qualquer animal, inclusive ao homem em estado bruto. Num país onde os níveis de compreensão de qualquer conceito abstrato, inseridos no âmbito da cultura, são baixíssimos, a fórmula não poderia dar errado. Proporcionou grandes audiências aos ratinhos nacionais e agora impulsiona os similares regionais.

Estes últimos no entanto entraram na história um pouco atrasados e precisaram introduzir novos ingredientes na receita para que ela não desandasse. Mas não precisaram muito esforço. Bastou juntar as cenas de sexo com as de violência, que antes apareciam separadas, numa só.

Referências a estupros e cenas de pedofilia são os exemplos mais bem acabados dessa nova fórmula da indigência televisiva oferecidas aos adultos e às crianças. Muitos dos quais, infelizmente, divertem-se com a desgraça alheia. E depois ainda se pergunta a razão de tanta insensibilidade diante da violência real existente no país. São gerações sendo educadas para a banalização do mal.



Claro que nem tudo está perdido. Como ocorreu com as redes nacionais, também em algumas capitais a sociedade começa a reagir. A mencionada matéria denúncia do jornal A Tarde, é um exemplo. Mas há outros. No Recife o Ministério Público Estadual age sob demanda de diversas organizações sociais. Os alvos são os programas Bronca Pesada e Papeiro da Cinderela, apresentados pela TV Jornal do Commercio, afiliada do SBT. Vale a pena reproduzir alguns trechos da Ação Civil Pública assinada pelos promotores de Justiça Jecqueline Elihimas e José Edivaldo da Silva. Dizem eles, em resumo:



''O que se enxerga nos programas, que passam ao largo de uma legítima expressão artística, é apenas um enfoque bizarro tanto de situações do cotidiano ou dos próprios seres humanos, ali escolhidos para servirem de troça aos telespectadores. Sob o manto dissimulado da comédia, o que na verdade se vê é a execração pública das pessoas humildes, de suas vidas privadas, de seu sofrimento e dramas pessoais. Dessa forma, tornam a realidade cruel, injusta, sofrida ou violenta de uma população já excluída, um motivo de zombaria para os que a assistem. O que se vê é uma postura constante de veiculação e propagação de idéias preconceituosas, discriminatórias e homofóbicas e que atentam claramente contra princípios constitucionais, em especial à dignidade humana''.



E pedem, além da suspensão dos programas, uma indenização por danos morais coletivos no valor de um milhão de reais, a serem revertidos para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife, e a veiculação por 60 dias do direito de resposta, como ocorreu em São Paulo, com a Rede TV. Além de rebaterem, por antecipação, o desgastado chavão da censura usado pelos radiodifusores quando instados pela sociedade a se comportarem de acordo com a Lei. Nesse sentido a ação lembra uma decisão do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual as liberdades públicas não são incondicionais, e por isso devem ser exercidas de maneira harmônica. O preceito da liberdade de expressão, por exemplo, não consagra o direito à incitação ao racismo.

Isto implica dizer que a liberdade de imprensa, como qualquer outro direito, há que se sujeitar aos limites constitucionais, democraticamente outorgados e que a democracia e a própria liberdade, sustentam-se em pilares de respeito e equilíbrio entre diversos direitos individuais e coletivos, afirmam os promotores.

Segundo eles esses programas ferem tanto a Constituição brasileira como algumas das leis em vigor no país como Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, todos ratificados pelo Brasil. O Ministério Público pernambucano já tentou formular um Termo de Ajustamento de Conduta com a emissora mas não teve êxito. Agora resta esperar a decisão da Justiça que se arrasta há mais de um ano.

De positivo há o fato de que, como aconteceu com as grandes redes nacionais, também as emissoras regionais passam a se confrontar com a Lei, resultado da atuação de organizações sociais dispostas a lutar por uma sociedade um pouco menos brutalizada.


* Sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão (Summus Editorial); fonte: http://www.cartamaior.com.br

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