As prefeituras de São Paulo e do Rio encontraram um meio para limpar as duas cidades dos detritos humanos que as infestam. É ainda o início do processo, que promete completar-se com outras medidas. Os bancos das praças e jardins, usados pelos miseráveis sem-teto, serão separados por placas divisórias. Dessa forma, os mendigos não poderão neles dormir. Os bancos dos jardins, disse uma autoridade carioca, se destinam às "pessoas de bem", que, deles, poderão contemplar as belezas da cidade. A premissa se impõe: quem é de "bem" no Brasil?
Provavelmente essa sábia e justa autoridade considere que as pessoas de bem sejam as pessoas "de bens". Se assim for, poderíamos estabelecer uma escala, dentro de moderna definição moral. Poderiam criar um registro para que as pessoas se inscrevam, de acordo com sua riqueza e renda, devidamente atestadas pela Receita Federal. Quanto maiores os bens, maior seria sua respeitabilidade. A transubstanciação do advérbio "bem" no substantivo plural "bens" atende à nova linguagem do poder.
Trata-se da continuação de processo antigo e reanimado pelo novo liberalismo, que sofre agora seu desaire, mas não se considera vencido. O raciocínio é singelo: o mundo é lindo se for habitado por pessoas bem vestidas, sadias, belas. "Beleza é saúde", dizem os slogans de propaganda. Antes mesmo de Hitler, houve quem propusesse programas de eugenia, com a esterilização dos deformados e inúteis. Os eugenistas relacionam a estética ao comportamento, como o fez Lombroso: o feio é sempre malfeitor. O feio, o sujo, o desempregado, o demente, o descalço, o descamisado, o macróbio. Enfim, para resumir, o pobre e indefeso.
O processo de exclusão, se não for contido, evoluirá. Daqui a pouco, as posturas municipais – e, mais tarde, a legislação estadual, antes da federal – exigirão que só andem nas ruas os que estiverem bem vestidos. Postos de vigilância serão instalados nos terminais de ônibus, e detectores digitais utilizados, para mandar de volta aos subúrbios e favelas os que não estiverem devidamente aptos ao convívio "civilizado", para usar o eufemismo corrente. Esses instrumentos identificarão os acometidos de alguma doença contagiosa, que serão isolados, no ato. O processo, para seu êxito final, reclama medidas ainda mais rigorosas. Como os mais velhos se lembram, houve quem se atrevesse a mandar afogar os mendigos no Rio da Guarda, e quem aconselhasse a resolver o problema das favelas cariocas mediante o fogo saneador.
Como ocorre em tempos semelhantes, há "voluntários" e "justiceiros" que se adiantam na ação de "limpeza". Em Brasília, bravos rapazes, filhos de gente "de bem" e de bens, queimaram um índio que dormia na parada de ônibus. Outros os imitaram, em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, moradores de rua morreram a tiros. No campo, cerca de 1.500 trabalhadores sem terra foram abatidos nos últimos anos, segundo estatísticas da CNBB.
A concentração da riqueza, associada à inevitabilidade da transparência, com os novos meios de comunicação da cidadania, está semeando o inconformismo e, fatalmente, conduzirá à revolta dos excluídos. Os pobres, sempre mais pobres, constituem hoje nova etnia, consciente da injustiça que sofre. Essa consciência cresce, enquanto aumenta a hostilidade contra os excluídos, na humilhação cotidiana e no soberbo desdém que lhes destinam parcelas alienadas da classe média. Os pobres se encontram acuados como animais de presa, e chegará o momento em que o medo será substituído pelo desespero.
Em setembro de 1935, os alemães promulgaram as leis de Nurenberg. Sua primeira aplicação se fez nos bancos dos jardins e praças públicas, com a inscrição que os vedava ao uso dos judeus: nicht für juden. Nos anos seguintes, houve os campos de extermínio, as câmaras de gás, a morte de 6 milhões de judeus, 20 milhões de eslavos, ciganos e outras "raças inferiores", e o sacrifício de milhões de jovens combatentes nos dois lados do front. Em abril de 1945, o corpo do suicida Adolf Hitler foi torrado às pressas junto aos restos de uma cadela e seus filhotes, em pira de molambos e gasolina.
O Ministério Público deve agir, e já. Todos os seres – e não só os homens – têm o inegável direito a dormir, quando e onde lhes for possível. Privá-los do sono é abominável forma de tortura.
Domingo, 22 de Março de 2009
Colaboração da amiga Nancy Lima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário