quinta-feira, 5 de março de 2009

UM EDITORIAL REPULSIVO


17 de fevereiro de 2009. Uma terça-feira banal. Ou que poderia ser banal. Não foi. Ocorreu um fato que fez dela um dia relevante para o debate em torno da consolidação democrática da sociedade brasileira. O espírito do General Sílvio Frota, o Ministro do Exército que tentou derrubar o general Ernesto Geisel porque era um frouxo e assegurava que o general Golbery era um perigoso comunista, atravessou a Rua Barão de Limeira e baixou sobre a mesa do editorialista do Jornal Folha de S. Paulo. O resultado foi uma desastrada tentativa de reescrever um episódio recente da história do Brasil. Pelo olhar do general Frota, ou do Cel. Brilhante Ustra, terá sido seguramente uma “ditabranda” a ditadura militar brasileira de 1964 a 1985.

Curioso país. O Cel. Brilhante Ustra ainda hoje é tratado por alguns meios de comunicação como um personagem da vida política. Na verdade é responsável por dezenas de assassinatos de prisioneiros políticos sob tortura, ali na Rua Thomaz Carvalhal 1030, esquina com Tutoia, a dois passos do QG do II Exército, na cidade de S. Paulo, entre 1971 e 1975, período em que comandou a OBAN. É como se Martin Boormann, Mengelle, Klaus (Altman) Barbie, Rudolf Hess, Eichmann, se convertessem em pacíficos cidadãos, agentes políticos legítimos no processo de reconstrução das instituições democráticas na Alemanha do pós-guerra...

O editorialista, ao cunhar a expressão ditabranda, contou com um fator reiterado por estudiosos conservadores de que “o Brasil é um país sem memória”. Enganou-se. O penoso processo de reconstrução da democracia – interrompida pela ruptura do Estado de Direito produzia pelo o Golpe de 1º de Abril de 1964 – conta com uma base social muito mais complexa e vigorosa do que supôs a opinião do jornal. Para o narcísico rotativo da Barão de Limeira não existe sociedade civil independente dele. Mais precisamente a Folha de S. Paulo é a própria sociedade civil, na vã suposição dos seus proprietários.

Nos últimos trinta anos constituiu-se no Brasil uma teia de organizações sociais vasta e capilar que prosperou com muita luta e um enorme apreço pelo elemento-chave que lhe deu moldura: as relações democráticas constituídas, nas lutas urbanas e rurais e expressas, ainda que de maneira insuficiente na Carta de 88. Cito duas: não democratizamos o acesso à propriedade da terra e não democratizamos os meios de comunicação. O que faz do Brasil uma república inconclusa: a sociedade paga pelo monopólio da terra para um pequeno número de latifundiários e a grande audiência ainda se encontra nas mãos dos monopólios de comunicação que prosperaram à sombra da ditadura.

Para os propósitos que persegue, o Jornal Folha de S. Paulo abordou um tema que, em se tratando de quem se trata, deveria pelo menos recomendar prudência. É do domínio de setores ponderáveis da sociedade brasileira – entre eles uma parcela significativa dos seus assinantes e anunciantes – que a empresa Folha da Manhã foi uma ativa colaboradora da Ditadura Militar. O que lhe permitiu jamais ter sido visitada pelos homens de preto da censura, durante aqueles anos. Afinal, não era necessário.

Nenhuma publicação distribuída naquele período se prestou à perfeição como porta-voz. Não do regime militar em sentido genérico, mas em sentido específico do aparelho repressivo do regime, dos porões das delegacias onde se torturavam e assassinavam presos políticos, do que a Folha da Tarde, órgão do grupo destacado para a corbertura. Essa condição foi que permitiu ao jornal, em mais de um episódio, anunciar em manchete por antecipação a morte – “em tentativas de fuga ou por resistência à prisão” – de presos políticos que seriam assassinados nas próximas horas. Uma gentil troca de favores entre parceiros. Naqueles anos, a Folha da Tarde se prestou assim ao macabro papel de antecipar aos torturados ainda vivos, com detalhes não raro, cinematográficos, as circunstâncias de sua própria morte. Não chega a ser um papel de que alguém deve se orgulhar.

A opção política e empresarial de colaboração entre a Folha de S. Paulo e a OBAN, assim como outras empresas, como a Ultragás, para lembrar uma delas, é notória. Seria compreensível que um veículo de imprensa de arraigadas convicções de direita secundasse as políticas de uma ditadura, como a instaurada pelo Golpe de 64. Está no seu terreno, vender opiniões. Mas foge à compreensão – e à tolerância – que uma empresa jornalística ceda seus equipamentos de transporte a policiais para realizar campanas e transportar presos políticos enviados a centros de tortura.

A expressão ditabranda, não escapa, portanto, como obra do acaso. Não foi um impulso acadêmico – aparentemente inofensivo – do editorialista de reescrever esse episódio da história do Brasil. A trajetória do jornal não recomenda esse viés de interpretação. Trata-se de um jornal militante. Atento ao presente e com os olhos postos nos seus objetivos futuros. O recurso – como vemos, seletivo – ao passado sempre estará a serviço desses objetivos empresariais permanentes.

O professor Fábio Konder Comparato e a professora Maria Victória Benevides expressaram, ao lado de outros leitores, sua indignação diante do editorial. As respostas neutras oferecidas aos demais, ganharam um tom agressivo e grosseiro, no caso deles. Revelava-se assim a face oculta da formulação do editorialista: quem não está de acordo que a dita foi branda, como os dois, é porque expressam “uma indignação mentirosa e cínica”. Deve muito a sociedade brasileira aos professores Fábio Comparato e Maria Vitória por sua participação militante em todos os momentos da reconstrução democrática do país. O manifesto encabeçado pelo professor Antônio Candido é o melhor testemunho da solidariedade que lhes devemos.

Em artigo recente, a professora Maria Vitória pergunta “O que explica essa inacreditável estupidez da Folha?” Para levantar três explicações: “1. A combativa atuação do advogado Comparato para impedir que os torturadores permaneçam “anistiados” (atenção: o caso será julgado em breve no STF!). 2. O insidioso revisionismo histórico, com certos acadêmicos, políticos e jornalistas, a quem não interessa a campanha pelo “Direito à Memória e à Verdade”. 3. A possível derrota eleitoral do esquema PSDB-DEM, em 2010.” Não será ocioso considerar que no início do ano em que inevitavelmente virá para a agenda do país o debate em torno da Lei da Anistia de 28 de agosto de 1979, o zeloso editorialista do Jornal Folha de S. Paulo se antecipe cunhando a nova moeda: a ditabranda com o objetivo contribuir para dissolver toda a carga de opressão, de tortura, de terror e morte que vivemos naqueles anos. Ora, se a dita foi branda não há porque revolver esse passado incômodo como deseja a campanha pelo Direito à Memória e à Verdade. Isso vai acabar impondo a necessidade de punir os responsáveis pelos crimes que ocorreram...

A sociedade civil brasileira, com a complexidade e independência que adquiriu, veio sedimentando uma noção sintonizada com o direito internacional expressa de forma sintética e límpida pelo Dr. Marco Antônio Rodrigues Barbosa, Presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos: “A tortura é um crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica e afeta toda a humanidade, na medida em que a condição humana é violentada na pessoa submetida a esse crime. Quando alguém é torturado, somos todos atingidos duplamente: em nossa humanidade e em nossa cidadania. A prática da tortura é inaceitável e seus executores deverão ser punidos a qualquer tempo”. (Revista Teoria e Debate, nº 79, novembro/dezembro de 2008, pág. 36). Mais do que agredir quem discorda de suas opiniões, o editorialista do Jornal F. de S. Paulo é convidado a responder sobre este princípio.


Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-preso político. Permaneceu na OBAN de março a outubro de 1973. Foi presidente da Fundação Perseu Abramo .
Colaboração da amiga Nancy Lima.

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