domingo, 19 de abril de 2009

Compreender e enfrentar


O texto a seguir foi apresentado na Conferência da Esquerda Socialista, realizada nos dias 3 e 4 de abril de 2009.

Houve um tempo em que se achava artificial começar uma análise de conjuntura falando da situação internacional. Hoje acontece o oposto: no centro da conjuntura internacional e ocupando crescentemente o centro da conjuntura nacional está uma crise que só pode ser compreendida observando a situação de conjunto.

Há um intenso debate ideológico e teórico acerca das causas e da caracterização da crise. A tese mais popular afirma que estamos diante de uma crise financeira, que tem como pano de fundo as políticas neoliberais implementadas nas últimas décadas.

Este tese possui ampla aceitação na esquerda, mas também na direita. Vide Nicolas Sarkozy, para quem a “crise financeira não é a crise do capitalismo”, mas sim “a crise de um sistema que se afastou dos valores fundamentais do capitalismo”.

Para setores da direita, argumentar que se trata de uma crise financeira, permite defender o “capitalismo produtivo” e sustentar, como também faz Sarkozy, que “o anticapitalismo não oferece nenhuma solução para a crise atual”.

Para setores da esquerda, argumentar que se trata de uma crise do neoliberalismo permite saborear o gosto da vitória, na polêmica que sustentamos contra o monetarismo, o Estado mínimo, a desregulamentação, a flexibilização e o Consenso de Washington. Permite, também, escapar ou pelo menos colocar em segundo plano o debate acerca do socialismo.

Entretanto, comete um equívoco teórico, com conseqüências políticas e ideológicas, não perceber que estamos diante de uma clássica crise do capitalismo, que evidentemente atinge este capitalismo real que temos diante de nós: o “capitalismo neoliberal”.

Quem separa artificialmente neoliberalismo de capitalismo, capital financeiro de capital produtivo, comete equívoco metodologicamente similar aos que --no início dos anos 90—negavam estar em curso uma crise do socialismo, que seria (ao menos na teoria e na nossa vontade) algo bastante diferente da sua materialização concreta na URSS e em outros países.

Mesmo correndo o risco de chover no molhado, é preciso lembrar que:

1) as grandes empresas capitalistas atuam no mercado financeiro e, aliás, extraem parte expressiva de suas receitas da especulação, dos derivativos, do mercado acionário, dos hedges etc.;

2) o crescimento da “economia real”, ocorrido nos anos 1990, foi azeitado pelo crescimento exuberante dos ativos financeiros e pela oferta de crédito barato para o consumo;

3) o próprio neoliberalismo, como política de Estado, foi uma resposta as baixas taxas de crescimento e a queda nas taxas de lucro, experimentadas pelo capitalismo desde o início dos anos 1970. Portanto, estamos vivendo “a crise da resposta à crise” dos anos setenta;

4) a especulação financeira que assistimos nos últimos anos, combinada com a oferta de crédito barato, foram em última análise respostas a uma contradição estrutural do capitalismo, a saber: sua tendência a produzir cada vez mais mercadorias, com cada vez menos trabalho vivo, gerando superprodução de mercadorias e superprodução de capitais. Contradição cujo desfecho pode ser adiado, mas que ao fim e ao cabo conduz à destruição em larga escala dos capitais;

5) a desvalorização dos ativos financeiros, a concentração e centralização de capitais (o que inclui o fechamento de empresas), a ampliação do desemprego e a transformação de dívida privada em dívida pública são algumas das respostas clássicas, dadas a uma crise de tipo clássico.

Por isto, entre outros motivos, é que podemos dizer que estamos diante de uma crise do capitalismo (não apenas uma crise financeira ou resultante do neoliberalismo).

Aliás, com o perdão do neologismo, o capitalismo é um sistema “crísico”. Para citar um estudo recente, feito pelo IPEA: entre 1970 e 2007 ocorreram 127 crises bancárias sistêmicas, 208 crises cambiais e 63 episódios de crises de não pagamento de dívida soberana. Ou seja, 3 crises bancárias, 5 crises cambiais e 2 não pagamentos por ano!

A novidade existente na crise atual é dupla: sua profundidade e sua duração.

A profundidade deriva de um fato simples: nunca o capitalismo foi tão hegemônico e tão poderoso como é hoje. Logo, sua crise também é por definição mais profunda, como se percebe quando analisamos outras de suas dimensões (energética, alimentar, ambiental, política, civilizacional).

A duração deriva da combinação entre a crise econômica e o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, declínio que começa no exato momento em que a URSS é derrotada, enfraquecendo os motivos que levaram as demais nações capitalistas a aceitar a hegemonia dos EUA, a começar pela ONU, OTAN e instituições do chamado sistema Bretton Woods.

A caracterização desta crise como capitalista, profunda e de longa duração nos posiciona melhor no debate ideológico e na luta política que está em curso.

No início dos anos 1990, quando houve a crise geral do socialismo, a burguesia jogou-se numa ofensiva ideológica total, que intimidou e cooptou setores majoritários da esquerda em todo o mundo, no Brasil e no PT.

Aquela ofensiva foi em favor da alternativa ideologicamente extrema (o neoliberalismo), não a favor de um meio-termo social-democrata.

Já agora, quando caiu o “muro de Berlim” deles, o debate ideológico é proporcionalmente tímido e se trava, no essencial, entre neoliberais e keynesianos, que ideologicamente falando são parentes, pois no limite trata-se de correntes pró-capitalistas, que defendem o uso dos recursos públicos em favor do bom funcionamento dos mercados.

A esquerda socialista precisa participar deste debate, oferecendo uma crítica e uma alternativa ao capitalismo de conjunto. Evidentemente, sabendo diferenciar o que é tático (o combate a herança neoliberal, especialmente a hegemonia do capital financeiro), o que é estratégico (a defesa das reformas estruturais democrático-populares) e o que é programático (a defesa do socialismo).

No debate ideológico, um ponto central é o seguinte: se o capitalismo produz crises periódicas, se hoje ele vive do “crédito”, se ele precisa do Estado para voltar a funcionar, então ele não é um “dado da natureza” e depende da política; logo outra vontade política pode construir uma alternativa não-capitalista.

O que nos remete a nossa segunda tarefa diante da crise: além de compreender, enfrentar.

Do ponto de vista tático, a crise constitui no fundamental uma ameaça, tanto social quanto política, especialmente onde somos governo. Motivos pelos quais não devemos comemorar sua eclosão.

Mas, do ponto de vista estratégico, a crise constitui uma imensa oportunidade, tanto do ponto de vista ideológico, quanto do ponto estratégico, para aqueles que lutam pelo socialismo. Claro que é também uma oportunidade para as classes dominantes, risco que devemos sempre levar em conta na análise política.

Do ponto de vista estratégico, o que está em jogo é a construção do pós-neoliberalismo, cujo conteúdo será definido pela luta entre as classes, dentro de cada Estado, e pela luta entre Estados, na esfera mundial.

Simplificando, podemos dizer que nesta luta há três vertentes:

1) a conservadora, a saber, os mesmos que implantaram e lucraram com o neoliberalismo, buscam definir os parâmetros do pós-neoliberalismo. Esta é a orientação fundamental do governo Obama, que em seu discurso de posse disse explicitamente que os EUA estão “prontos para voltar a liderar”;

2) a progressista, expressa pelos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, que não estiveram no comando do período neoliberal. Seu objetivo é um capitalismo mais democrático, o que supõe inclusive que o dólar deixe de ser a moeda mundial. Este capitalismo mais democrático para os capitalistas pode ou não ser acompanhado de mais democracia e igualdade social;

3) a socialista, que obviamente luta por um pós-neoliberalismo que seja socialista.

A vertente mais poderosa, hoje, é a conservadora. Apesar da crise, Estados Unidos, União Européia e Japão seguem controlando a maior parte da economia, das forças armadas e da comunicação mundiais. E, paradoxalmente, a crise produz o medo, na maior parte dos demais países, do efeito Titanic, a saber: o colapso catastrófico das economias centrais, que puxaria todo o resto para o fundo. Neste contexto, Obama pode ser o homem certo, na hora certa, dando para alguns a esperança de que os Estados Unidos seriam capazes de liderar com “suavidade”.

A vertente progressista tem ampliado o seu espaço, que depende em certa medida do avanço da crise nos países centrais, bem como da disposição de pressão dos chamados “governos progressistas”. Como eles não têm força suficiente para impor unilateralmente outro desenho, os governos progressistas buscam um acordo com o G7, nos marcos do G20 e noutros espaços; mas, como a crise é sistêmica e profunda, os governos saem de reuniões internacionais como as do G20 preocupados em defender seus interesses uns contra os outros; numa dinâmica que não gera estabilidade, nem desfecho rápido para a crise. A verdade é que o desenvolvimento econômico gerou processos e interconexões mundiais, mas as contradições intercapitalistas impedem que haja um “governo mundial”.

A vertente socialista depende da ocorrência, em alguns países e regiões do mundo, de revoluções anticapitalistas, o que por sua vez está vinculado não apenas ao aprofundamento da crise, mas principalmente a mudança na percepção popular sobre a crise. Isto porque o aprofundamento da crise não gera, de per si, revoluções socialistas, especialmente neste período histórico em que nos encontramos, que ainda é de defensiva estratégica do movimento socialista, que ainda está lambendo e pensando as feridas da primeira tentativa de construção do socialismo, realizada no século XX. Tanto é assim que, independentemente da avaliação que façamos sobre o tipo de sociedade que existe nos países governados por partidos comunistas, podemos dizer que estes países e governos operam no cenário internacional em favor da “vertente progressista” citada anteriormente. Quanto ao chamado “socialismo do século XXI”, por enquanto ele é uma mistura de anti-imperialismo com capitalismo de Estado distributivista e popular.

Apesar dos senões acima listados, não devemos cair num pessimismo mecanicista. Até porque, assim como ocorreu no desfecho de outras grandes crises, o mundo pós-neoliberal tende a ser uma combinação das três vertentes: conservadora, progressista e socialista.

A preços de hoje, podemos dizer duas coisas:

a) ainda é forte o risco de um predomínio da vertente conservadora;

b) na América Latina existe uma correlação de forças favorável as vertentes “progressista” e “socialista”.

Em outros momentos da história, a América Latina se beneficiou de crises nas metrópoles. Assim foi nas décadas finais do século XVIII e iniciais do século XIX, que em nossa região foi marcado pelas independências; assim foi, também, na crise dos anos 1920 e 1930, a partir da qual se acelerou o processo de industrialização de importantes países da América Latina.

Nos anos 1970 acontece, na maior parte dos casos, o contrário: a crise vem acompanhada de um ciclo de ditaduras militares, que prepararam o terreno para o neoliberalismo.

Agora, a correlação de forças nos favorece. A esquerda faz parte de importantes governos na região e pode, mais do que denunciar e mobilizar e pressionar, agir tanto para combater os efeitos da crise, quanto para aprofundar as mudanças estruturais que nossas sociedades seguem necessitando.

Evidentemente, como já foi dito antes, o impacto tático imediato da crise tende a ser negativo, do ponto de vista social, econômico e político. Além disso, a crise tem como efeito colateral dificultar a situação econômica dos países mais radicalizados politicamente (Venezuela, Equador, Bolívia); aumentando ainda a pressão, vinda dos demais países da região, para que o Brasil arque com os custos da integração continental.

Frente a este quadro, é transcendental manter (e ampliar) o controle do governo brasileiro. O que dependerá em grande medida de nosso sucesso no enfrentamento da crise aqui e agora. Tal enfrentamento possui pelo menos cinco dimensões distintas, ligadas entre si, a saber: 1) a ação do governo federal, 2) a luta política e social, 3) a oposição aos tucanos e conservadores, 4) o debate ideológico e 5) a rearticulação do campo democrático-popular.

A ação do governo federal tem um rumo geral correto (priorizar o mercado interno, ampliar o investimento público, fortalecer o Estado e acelerar a integração), mas tem também grandes flancos: 1) o Banco Central; 2) a lentidão com que os recursos chegam na ponta; 3) incoerências na relação com as grandes empresas; 3) ilusões internacionais que persistem, por exemplo no debate sobre a OMC e acerca do protecionismo.

Na luta política e social, precisamos combinar a mobilização defensiva (especialmente contra o desemprego) com uma pauta ofensiva: redução da jornada de trabalho, ampliação das políticas públicas universais, tributação das grandes riquezas, re-estatização das empresas públicas que foram privatizadas, reforma agrária, reforma política e democratização da comunicação social.

Na oposição aos tucanos e conservadores, precisamos mostrar o que teria acontecido ao Brasil, se os bancos públicos tivessem sido privatizados e se a Alca estivesse implantada. E precisamos denunciar a política da oposição frente à crise (para eles, “quanto pior, melhor”), a começar pelo segundo e terceiro orçamentos do Brasil (estado e capital de São Paulo, respectivamente).

No debate ideológico, precisamos concentrar fogo sobre o pensamento neoliberal (desmoralizado, mas ainda dominante nos meios de comunicação e na academia), mas ao mesmo tempo apresentar críticas e propostas superiores às formuladas pelos keynesianos, sinceros ou recém-convertidos. Sustentar um desenvolvimentismo democrático-popular, articulado com o objetivo estratégico socialista.

Rearticular o campo democrático-popular, para enfrentar a crise, eleger uma presidente da República em 2010, ampliar nossa presença parlamentar e em governos estaduais. E para construir e conquistar o poder para as maiorias, numa equação estratégica que em alguns aspectos recorda aquela enfrentada pela Unidade Popular chilena, num contexto internacional novo e mais favorável, ao mesmo tempo mais complexo. O desfecho da crise no Brasil depende em última análise desta rearticulação do campo democrático-popular e do PT estar à altura das tarefas.



Valter Pomar é secretário de relações internacionais do PT.

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