quarta-feira, 20 de maio de 2009

Silêncio sepulcral


20/05/2009

Phydia de Athayde, CartaCapital

“Não é PCC. É crimes de maio. Se for falar que é PCC, a gente não aceita”, adverte a mulher. Ela tem 50 anos. Parecem mais, pois tem a secura e a dor de ter perdido o filho. Débora Maria da Silva enterrou Edson Rogério, de 29 anos, em maio de 2006. O rapaz foi alvejado com quatro tiros frontais, após descer da moto por ordem de policiais que o cercaram em três viaturas, na noite do dia 15.

“Ele foi morto ainda com o capacete. Os documentos estavam todos no bolso, inclusive o holerite, sujo de sangue, que eu ainda tenho.” Débora é uma das 483 mães que perderam filhos, mortos a tiros, entre 12 e 21 de maio daquele ano. O total engloba crimes comuns somados às duas dezenas de policiais assassinados a mando da facção criminosa PCC e, principalmente, às centenas de vítimas do revide às mortes dos agentes do Estado.

Inconformada com o desinteresse da polícia em investigar a morte de seu filho, Débora Silva criou uma associação com outras dezessete mães de vítimas da violência na Baixada Santista. “É para gritar contra esses crimes covardes. Mataram trabalhadores, mutilaram famílias”, diz, com palavras meio repetidas de quem já contou muitas vezes a mesma história, e interrompe-se: “Em primeiro lugar, quero uma retratação, pois a mídia colocou que era tudo bandido. Meu filho era gari, trabalhador. Varreu de manhã o lugar em que mataram ele”. Rogério morreu perto de casa, no bairro Caneleira, periferia noroeste de Santos (SP).

Débora usa uma camiseta branca com a foto do filho estampada, artigo tristemente comum a familiares de vítimas de violência no País. Após três anos, a foto está desbotada. Enquanto a mãe fala do episódio, enrola e desenrola sem parar o cordão dos óculos que segura nas mãos. Ao descrever a perda do filho e a vã busca por informação, investigação e justiça, emana uma mistura de constrangimento e dor.

“Recolheram o corpo para prejudicar a perícia. Alegaram que ele agonizava, mas quem leva um tiro no coração, dois nos pulmões e um na perna não agoniza. Não teve exame de balística, houve negligência na recuperação das imagens dele no posto de gasolina. O promotor que pediu o arquivamento sabe quem são os nove PMs envolvidos, mas disse não poder dizer qual é o assassino. A gente não aceita isso”, reclama, contendo com esforço o choro que brota conforme as lembranças voltam.

A mãe está obcecada em desvencilhar do nome e da memória do filho a pecha de “bandido”. Quer deixar claro que Rogério nada devia à lei. Ele, porém, atendia aos pré-requisitos que, no Brasil, são uma espécie de chamariz para abuso policial ou morte violenta: era jovem, pardo e pobre. Para piorar, estava na rua na noite errada.

Naquela segunda-feira, 15 de maio, nas periferias ecoava o aviso de que a polícia vinha para matar. Nos centros de classe média, espalhou-se o boato de que o PCC atacaria a qualquer momento. De um lado, tombaram jovens como Rogério. De outro, milhões de paulistanos correram apavorados para casa mais cedo, gerando um congestionamento monstruoso às 4 da tarde. Naquela noite, as ruas da maior cidade do País estavam desertas.

O que ficou conhecido como Maio Sangrento começou na sexta-feira anterior, com ataques a delegacias e a agentes de segurança, a mando do PCC, que retaliava as forças públicas pela transferência carcerária de líderes da facção. Evoluiu para rebeliões em dezoito presídios, comandadas pela organização, e então para ataques a agências bancárias e incêndios a quase uma centena de ônibus na capital e no interior paulista.

À medida que a violência aumentava, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo promoveu um contra-ataque “à altura” das agressões. Na ocasião, o major da Polícia Militar Sérgio Olimpio Gomes foi bastante claro: “Vamos revidar, vai ser pau duro”.

O que se viu nos dias subsequentes foi um índice de mortes violentas quatro vezes maior do que a média paulista. Nos primeiros dois dias, o número de vítimas civis e de agentes públicos era semelhante – civis morreram no entorno dos postos policiais atacados. No terceiro dia começa o revide: morrem mais de dez civis para cada agente vitimado. No quinto dia, passam de vinte civis mortos por agente público. Do sexto ao décimo dia, apenas civis seguem sendo mortos. Não é difícil notar que a reação às primeiras mortes foi desmedida, desproporcional. Desumana.

O saldo desses dez dias é de 483 mortes. Só foi possível chegar a esse número graças ao trabalho do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que teve acesso aos laudos necroscópicos de 23 equipes médicas dos IMLs paulistas e contabilizou-os, à revelia da Secretaria de Segurança Pública. À época, o órgão admitia menos da metade das ocorrências. Ainda hoje, mantém uma postura defensiva e avisa que “não se manifestará a respeito do assunto”.

Nesses três anos, a Ouvidoria da Polícia acompanhou 102 casos em que policiais eram suspeitos de matar 170 civis. Destes, 63% foram arquivados. Entre os casos, há 54 atentados com “características de execução”, ou seja, sem dar chance de defesa à vítima, que resultaram em 89 mortes, dos quais 33 estão arquivados e 16 em andamento.

Essa história pode ser contada por termos jurídicos e estatísticas ou pela voz de mulheres como Vera Lúcia de Freitas, que perdeu o filho Mateus, de 21 anos, na noite da quarta-feira 17 de maio de 2006. Após ser dispensado da escola, que suspendeu as aulas por causa dos boatos de ataques, o jovem passou em casa para deixar os livros e saiu. Conversava com o amigo Ricardo Noronha, de 17 anos, em frente a uma pizzaria no bairro do Saboó, onde morava, quando quatro homens, em duas motos, chegaram atirando. Ricardo caiu. A pizzaria fechou as portas e, em pânico, Mateus correu. Morreria a 200 metros dali, alvejado por três disparos, todos na cabeça.

“Eu e meu marido ouvimos os tiros. Ele saiu para ver o que tinha acontecido, viu o Ricardo agonizando e encontrou Mateus já morto. Quando colocou o corpo nos ombros, para não deixar ali na rua, imediatamente a polícia chegou”, acrescenta a mãe, com a certeza de que algo está muito errado na história. A partir daí, o caso seguiu para o desfecho ordinário: “Não houve investigação. Foi arquivado”.

Três anos depois a dor não diminuiu. “Eu queria que algo aliviasse a tristeza para eu poder viver, mas é muito difícil, ainda mais por ser uma morte tão brutal, sem explicação, sem motivo”, diz Vera Lúcia.

Em casa, os outros dois filhos, de 22 e 31 anos, evitam falar de Mateus. O pai pediu para tirar as fotos do falecido dos álbuns de família, pois não suporta a lembrança. A proximidade com outras mães ajuda a enfrentar esse tipo específico de solidão. “Como é a mesma dor, uma entende a outra. E temos a mesma revolta, por isso nos juntamos para fazer alguma coisa.” Neste aniversário de três anos dos crimes, Débora, Vera Lúcia e outras mães subiram a serra rumo à capital paulista.

Elas participaram de um ato público, organizado pelo Cremesp e pela organização de direitos humanos Conectas. Na terça-feira 12, representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública do Estado, do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e da Ouvidoria da Polícia fizeram um balanço do que aconteceu passados três anos dos crimes de maio.

O promotor Augusto Eduardo Rossini defendeu a atuação do Ministério Público Estadual e alegou que a instituição, sozinha, não tem como resolver o problema da impunidade. “É muito difícil, impossível, oferecer uma denúncia sem provas. Esse é um rito extremamente complexo”, disse, para em seguida desabafar: “Lamento. O sistema não funcionou”. Rossini também criticou as limitações do MP, as pressões contrárias ao poder de investigação do órgão e o fato de os promotores chegarem tardiamente ao fato criminoso.

Seguiu-se o tom de frustração. Rose Nogueira, ex-presidente do Condepe, lamentou que os processos tenham sido espalhados por muitas varas diferentes, a dificultar o trabalho das organizações que tentam acompanhar os desfechos. Ela falou sobre os crimes: “Que guerra foi essa? Uma guerra de pobre contra pobre. Estamos aqui para que isso nunca mais aconteça. São vidas, são pessoas, e não podem terminar assim”.

O defensor público Pedro Gilberti criticou o termo “resistência seguida de morte”, usado pelos policias nos boletins de ocorrência, que, a seu ver, acoberta o homicídio e inviabiliza a investigação. “O crime é de homicídio e deve ir para o Tribunal do Júri, de crimes contra a vida. Muitos inquéritos são arquivados porque começam com esse rótulo podre de resistência seguida de morte, que transforma quem matou em vítima. Isso tem que mudar.”

Nos crimes de maio, 81 óbitos foram registrados nos boletins de ocorrência como “resistência à prisão seguida de morte”. Por conta disso, deixaram de ser investigados como homicídios.

Advogada da Conectas, Eloísa Machado encerrou a mesa com uma fala que fez as mães presentes interromperem para aplaudir. “Infelizmente, nosso receio da participação de policiais nas mortes vem se confirmando. É lamentável que após três anos ainda não se tenham números precisos. O Estado de São Paulo não é capaz de lidar com esses casos, por isso estamos levando-os para a Procuradoria da República e para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.”

Na terça-feira 12, a Conectas formalizou o pedido de federalização de um caso exemplar dos crimes de maio, que resultou na morte de quatro jovens no Parque Bristol, periferia da zona sul de São Paulo. “O pedido de federalização do inquérito não é um recurso, é válido quando há agravo de direitos humanos, quando a Justiça no estado não funciona e quando se busca eximir o Brasil de uma corte internacional”, explica. Além do pedido de federalização, a Conectas enviou o pedido de apreciação do caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que levará seis meses para ser admitido ou negado.

No ato público também foi divulgada uma pesquisa do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, coordenado pelo professor Ignácio Cano, que comparou todos os boletins de ocorrência e respectivos laudos cadavéricos e periciais daquele maio. Cano apresentou dados que confrontam a versão oficial, da polícia, de que seus agentes apenas reagiram a ataques de “bandidos”: só 6% dos mortos tinham antecedentes criminais.

Em média, cada vítima levou 4,8 tiros, e 60% dos mortos receberam ao menos um disparo na cabeça, 27% ao menos um disparo na nuca, e 57% ao menos um nas costas. “Muitas dessas mortes não aconteceram em confrontos armados, mas em execuções em que a vítima não teve chance de defesa ou estava tentando escapar”, conclui o estudo.

Por sua vez, os números que dizem respeito à sequência das investigações alimentam e confirmam a revolta das mães, além de subsidiar a argumentação da Conectas. A polícia fez laudo balístico em apenas 23 casos (5,7% do total), a mesma incidência de perícias no local do crime. A perícia da arma utilizada na ocorrência aconteceu em 55 casos (13,7% do total), e o laudo residuográfico (que aponta se há resquício de pólvora nas mãos da vítima, o que indica confronto armado) aconteceu em 54 casos, ou 13,5% do total.

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