O impostômetro, equipamento que mede quanto o “brasileiro” já pagou de tributos no ano, alcançou a marca de R$ 1 trilhão na segunda-feira. O aparelho está instalado na fachada da Associação Comercial de São Paulo, no centro da cidade. Este impostômetro é uma impostura.
Por Osvaldo Bertolino
Por que o placar não mostra o “jurômetro”? Houvesse tal contagem, o brasileiro ficaria sabendo que é o pagamento de juros o maior responsável pelos números altíssimos do impostômetro. Conforme compilação de João Sicsú, economista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), feita para a revista Rumos do Desenvolvimento no ano passado, os juros comeram R$ 587,9 bilhões só nos últimos 5 anos contados até 2008.
Correspondem a 25% de tudo o que país produziu em 2006, à imponente média de algo em torno de 6% ao ano. Para comparação, sempre segundo a mesma fonte: com educação, os gastos somaram R$ 62,3 bilhões; com saúde, R$ 136,3 bilhões. Como lembra freqüentemente Marcio Pochmann, presidente do Ipea, 80% do que é pago de juros vai para o bolso de apenas 20 mil famílias, a elite da elite.
Instituições financeiras
E, pode-se dizer, boa parte das pessoas dessas famílias são aqueles que pertencem a um segmento em que as regras de oferta, demanda e atendimento fogem de padrões normais. Geralmente, elas têm conhecimentos financeiros acima da média da população e sabem conservar e ampliar sua fortuna.
Elas normalmente são pessoas que entregam seu dinheiro apenas para instituições bancárias muito bem enfronhadas nas malandragens do mundo financeiro. Se não fosse assim, já teriam perdido tudo ou grande parte do que possuem. Os departamentos de private banking das mais conhecidas instituições financeiras do Brasil recrutam profissionais com a tarefa exclusiva de atender a esse seleto público — essa categoria de pessoas, os chamados high net worth clients (HNWC), só aceita conselhos de consultores que consideram do seu próprio nível.
No extrato mais rico da população estão indivíduos acostumados a obter as melhores informações em relação às diversas formas de investir na ciranda financeira. Muitas vezes eles conhecem os mercados financeiros tão bem quanto os próprios consultores. Utilizam cada vez mais freqüentemente a Internet. Sabem o que se passa no mundo financeiro — lêem revistas como Business Week, The Economist, Forbes e Fortune.
Números estarrecedores
E são mestres na arte da sonegação de impostos — deixando a carga tributária pesar nas costas dos assalariados. A universalização da malandragem nessa área mostra uma outra face perversa do Brasil. Ninguém gosta de pagar impostos. Aqui, na Bósnia-Herzegóvina, no Paraguai, na Escócia ou nos Estados Unidos — em lugar nenhum do planeta, enfim — há de se encontrar um só ser que encare numa boa a mordida do Fisco. Mas no Brasil essa gente elevou a sonegação ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma.
Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%. Quando o ex- secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não paga Imposto de Renda (IR). O mesmo ocorre com os bancos.
Das 66 maiores instituições financeiras, 42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel chamou de “indústria de liminares”. No sistema financeiro, 34% dos débitos reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de liminares.
Vantagem “competitiva”
Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros.
O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.
Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI, promovida pelo Senado em 1994.
Elisão fiscal
Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).
Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado.
Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho, também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do IPI. “O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda nacional”, disse Lopes Filho.
Aparelhamento do Fisco
O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados. Em São Paulo, que recolhe por volta de US$ 20 bilhões por ano em impostos, 50 grandes contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque, verifica-se que os 1.600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344 mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado.
Diante desse quadro, não é difícil imaginar quem se beneficia da universalização da malandragem e quem paga por isso. A transformação do Fisco num instrumento de defesa de quem cumpre com suas obrigações e, por isso mesmo, tem o direito de exigir que as regras do jogo sejam iguais para todos, passa também pelo seu reaparelhamento.
Sua máquina sofreu estragos consideráveis durante a “era FHC”. Para se ter uma idéia, em 1969, quando o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro era de US$ 160 bilhões, o órgão contava com 12 mil fiscais, segundo a CPI da Evasão. Atualmente, são cerca de 8 mil. Uma máquina mais azeitada e um sistema tributário mais eqüitativo são as pedras fundamentais para o encaminhamento da questão fiscal no Brasil.
Pena de morte
Mas as dificuldades são de toda ordem, sobretudo políticas. A questão exige, também, uma descomplicação e agilização nos processos de cobrança dos sonegadores — os depósitos judiciais chegam atualmente a US$ 17 bilhões. Pendências de 5 e até 10 anos são corriqueiras. Tudo somado, chega-se à seguinte conclusão: a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um punhado terá de ser arrancada a fórceps.
No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? Mas esses sonegadores falam pelos cotovelos, publicam lixos como a revista Veja e o jornal Folha de S. Paulo, promovem passeatas pela “paz” pedindo “mais segurança” e pregam sistematicamente contra o governo Lula.
Para essas pessoas, o presidente da República é um homem “que não trabalha” e não sabe o que significa economia, a não ser na conta básica de que 2+2 = 4. São elas também que atribuem a criminalidade à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas, a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte. Uma beleza!
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