“Talvez o epitáfio de Fernando Henrique devesse ser ‘Príncipe das Trevas’, uma amarga ironia para quem se queria o autor do renascimento brasileiro e que algum dia foi chamado por Glauber Rocha de ‘príncipe dos sociólogos’”
Tentando formular algumas características do atual momento político brasileiro, repasso alguns textos de Chico de Oliveira, publicados em “A Era da Indeterminação” [1], precisamente quando este diz que um dos mais instigantes paradoxos da situação brasileira é que a participação da cidadania na política aumentou extraordinariamente no Brasil nos últimos cinqüenta anos, principalmente pela ampliação do colégio eleitoral e diversificação da “oferta política”. O voto obrigatório contribuiu muito para romper o coronelismo, até em locais secularmente oligárquicos, incluindo-se o exponencial crescimento do associativismo civil. Mas é nessas condições extremamente favoráveis que ocorre a perda da representatividade.
Uma vez que temos aqui uma democracia apenas “formal” e não “de fato e de direito”. Segundo Chico, há uma “ação anticomunicativa”, uma falta de formas, sem as quais a política não se faz. Porque existe a chamada “autonomização do mercado” - nada a ver com a autonomia cidadã da tradição liberal – mas o seu contrário. Aqui “autonomização” significa que não há regras mercantis, é o mercado para além de si, um permanente ad hoc, em que não se fixam contratos.
Tal processo se fundamenta na financeirização dos Estados nacionais, e é igual à incerteza que se inscreve nos negócios ilícitos do narcotráfico: como as taxas de juros já não dependem do movimento interno de capitais, o movimento financeiro, que se transporta para o Estado e a produção, dança diariamente e somente os especuladores correm o risco. Não há mais parâmetros criados pela experiência: não há mais acumulação de experiências. Daí a financeirização freqüentemente redundar em estagnação da produção material e destruição do aparato produtivo – que na periferia tem assumido os tons mais dramáticos.
É interessante notar que Chico faz um balanço dos dois mandatos de FHC, sobretudo o último: “Em termos macroeconômicos, o permanente ad hoc requer a violência estatal permanentemente, a “exceção permanente” – que poderia sugerir que o monopólio legal da violência foi reconquistado pelo Estado. Longe disso: a violência permanente também significa que o Estado é ad hoc. A governabilidade é lograda graças ao uso permanente de medidas provisórias e a arquitetura das privatizações requer injeções de recursos públicos em larga escala para sustentar a reprodução do capital, a julgar pelo crescimento exponencial da dívida pública interna e externa e seus pesos no PIB.”
“A indústria elétrica privatizada, com o racionamento que se impôs para evitar o apagão geral, deixou de lucrar nos termos previstos na privatização e cobrou do Estado aquilo que a dança-de-são-guido do mercado não pode assegurar: a realização do valor. Os custos do racionamento estão sendo pagos pelos consumidores, que racionaram – helas! – seu consumo de energia elétrica, por meio duma alíquota específica nas contas de luz outorgada por medida provisória do presidente!”
“O Congresso leva meses para – com enorme custo e utilização dos recursos políticos do típico presidencialismo imperial brasileiro – votar um orçamento: uma penada do Banco Central, para vender títulos com correção cambial e enfrentar ondas especulativas que se repetem como norma no período, e leva à explosão da dívida pública interna. Talvez o epitáfio do presidente FHC pudesse ser ‘Príncipe das Trevas’, uma amarga ironia para quem se queria o autor do renascimento brasileiro e que algum dia foi chamado por Glauber Rocha de ‘príncipe dos sociólogos”.
Para além da tomada de consciência sobre as desigualdades abissais, nas dobras da crítica ao Estado como “mau gerente”, há a privatização das políticas sociais, a “desuniversalização”, a “filantropização da pobreza”. O aumento do associativismo civil no Brasil que tem, virtualmente, capacidade para fornecer as bases para um novo pacto ou contrato social para uma nova hegemonia, com o deslocamento do trabalho e das relações de classes, esvazia essa “sociedade civil” do conflito que estrutura alianças, opções e estratégias. Porque essa “sociedade civil” fica restrita aos arranjos locais e localizados, enquanto as operações da política se tornam “reserva de caça” das grandes empresas e do mercado.
E Chico conclui: “E todos os programas dos partidos são parecidíssimos porque todos estão pautados pela herança do desastre do neoliberalismo de FHC, e todos buscam representar o irrepresentável: a burguesia nacional, que já não manda; o capital financeiro, que é o obstáculo para o desenvolvimento e que já se desligou de qualquer representação de classe e cujos interesses promovem a exclusão; a classe trabalhadora cujos recursos políticos foram terrivelmente danificados no período neoliberal. A educação e a cultura são transformadas em territórios não-conflitivos, esquecendo-se, novamente, Walter Benjamin, pois cultura e barbárie sempre andaram juntas”.
E nem precisa ir muito longe, nem muito fundo, é só vocês conferirem aí do lado as colunas do Mirisola, velho de guerra.
[1] São Paulo, Boitempo, 2007.
Tentando formular algumas características do atual momento político brasileiro, repasso alguns textos de Chico de Oliveira, publicados em “A Era da Indeterminação” [1], precisamente quando este diz que um dos mais instigantes paradoxos da situação brasileira é que a participação da cidadania na política aumentou extraordinariamente no Brasil nos últimos cinqüenta anos, principalmente pela ampliação do colégio eleitoral e diversificação da “oferta política”. O voto obrigatório contribuiu muito para romper o coronelismo, até em locais secularmente oligárquicos, incluindo-se o exponencial crescimento do associativismo civil. Mas é nessas condições extremamente favoráveis que ocorre a perda da representatividade.
Uma vez que temos aqui uma democracia apenas “formal” e não “de fato e de direito”. Segundo Chico, há uma “ação anticomunicativa”, uma falta de formas, sem as quais a política não se faz. Porque existe a chamada “autonomização do mercado” - nada a ver com a autonomia cidadã da tradição liberal – mas o seu contrário. Aqui “autonomização” significa que não há regras mercantis, é o mercado para além de si, um permanente ad hoc, em que não se fixam contratos.
Tal processo se fundamenta na financeirização dos Estados nacionais, e é igual à incerteza que se inscreve nos negócios ilícitos do narcotráfico: como as taxas de juros já não dependem do movimento interno de capitais, o movimento financeiro, que se transporta para o Estado e a produção, dança diariamente e somente os especuladores correm o risco. Não há mais parâmetros criados pela experiência: não há mais acumulação de experiências. Daí a financeirização freqüentemente redundar em estagnação da produção material e destruição do aparato produtivo – que na periferia tem assumido os tons mais dramáticos.
É interessante notar que Chico faz um balanço dos dois mandatos de FHC, sobretudo o último: “Em termos macroeconômicos, o permanente ad hoc requer a violência estatal permanentemente, a “exceção permanente” – que poderia sugerir que o monopólio legal da violência foi reconquistado pelo Estado. Longe disso: a violência permanente também significa que o Estado é ad hoc. A governabilidade é lograda graças ao uso permanente de medidas provisórias e a arquitetura das privatizações requer injeções de recursos públicos em larga escala para sustentar a reprodução do capital, a julgar pelo crescimento exponencial da dívida pública interna e externa e seus pesos no PIB.”
“A indústria elétrica privatizada, com o racionamento que se impôs para evitar o apagão geral, deixou de lucrar nos termos previstos na privatização e cobrou do Estado aquilo que a dança-de-são-guido do mercado não pode assegurar: a realização do valor. Os custos do racionamento estão sendo pagos pelos consumidores, que racionaram – helas! – seu consumo de energia elétrica, por meio duma alíquota específica nas contas de luz outorgada por medida provisória do presidente!”
“O Congresso leva meses para – com enorme custo e utilização dos recursos políticos do típico presidencialismo imperial brasileiro – votar um orçamento: uma penada do Banco Central, para vender títulos com correção cambial e enfrentar ondas especulativas que se repetem como norma no período, e leva à explosão da dívida pública interna. Talvez o epitáfio do presidente FHC pudesse ser ‘Príncipe das Trevas’, uma amarga ironia para quem se queria o autor do renascimento brasileiro e que algum dia foi chamado por Glauber Rocha de ‘príncipe dos sociólogos”.
Para além da tomada de consciência sobre as desigualdades abissais, nas dobras da crítica ao Estado como “mau gerente”, há a privatização das políticas sociais, a “desuniversalização”, a “filantropização da pobreza”. O aumento do associativismo civil no Brasil que tem, virtualmente, capacidade para fornecer as bases para um novo pacto ou contrato social para uma nova hegemonia, com o deslocamento do trabalho e das relações de classes, esvazia essa “sociedade civil” do conflito que estrutura alianças, opções e estratégias. Porque essa “sociedade civil” fica restrita aos arranjos locais e localizados, enquanto as operações da política se tornam “reserva de caça” das grandes empresas e do mercado.
E Chico conclui: “E todos os programas dos partidos são parecidíssimos porque todos estão pautados pela herança do desastre do neoliberalismo de FHC, e todos buscam representar o irrepresentável: a burguesia nacional, que já não manda; o capital financeiro, que é o obstáculo para o desenvolvimento e que já se desligou de qualquer representação de classe e cujos interesses promovem a exclusão; a classe trabalhadora cujos recursos políticos foram terrivelmente danificados no período neoliberal. A educação e a cultura são transformadas em territórios não-conflitivos, esquecendo-se, novamente, Walter Benjamin, pois cultura e barbárie sempre andaram juntas”.
E nem precisa ir muito longe, nem muito fundo, é só vocês conferirem aí do lado as colunas do Mirisola, velho de guerra.
[1] São Paulo, Boitempo, 2007.
Márcia Denser, Congresso Em Foco
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