Soraya Aggege
O PT acaba de desenhar um novo caminho no espectro das forças políticas brasileiras. A mudança, definida pelas bases regionais sem nenhum estardalhaço, surpreendeu as lideranças do partido. Na prática, os 1.350 delegados que participaram do 4º Congresso Nacional do partido, entre 2 e 4 de setembro, em Brasília, decidiram romper com o processo de “peemedebização” da legenda.
Os delegados, geralmente engessados por suas correntes, desta vez votaram mais livremente em parte significativa dos temas que definiram os novos rumos do partido. Eles se aproveitaram de duas novidades deste congresso: o novo sistema de votação, com crachás eletrônicos – que permitiram o voto secreto – e uma divisão pontual das forças majoritárias sobre os rumos que o partido tomaria, principalmente a Construindo um Novo Brasil (CNB), maior corrente petista.
Sem muito barulho, as bases toparam referendar o pragmatismo eleitoral e a ampliação das alianças ao centro para 2012, mas deixaram muito claro que essa vitamina eleitoral não poderá alimentar também a sua estrutura interna nem o seu projeto político.
Há quase nove anos no topo do poder nacional, cada dia mais acostumado às concessões governamentais e alinhado ao centro pela coalizão eleitoral, pairava nas bases o temor de que o PT, hoje com 1,5 milhão de filiados, se transformasse em uma versão perigosa do PMDB.
Os sintomas eram claros: uma solidificação do poder dos mandatos e os grupos internos que ensaiavam currais eleitorais. Circulam no partido inclusive denúncias de compras de votos nas eleições internas. Além disso, o poder dos grupos, como dos parlamentares, vem se solidificando em torno de questões pontuais, para além das correntes ideológicas, que sempre caracterizaram o partido. Grupos importantes pretendiam, por exemplo, eliminar as prévias e abrir o partido para as filiações em massa, eliminando até mesmo a contribuição obrigatória.
As bases petistas mostraram que não aceitam compor um partido tradicional. Decidiram que, para se tornar petista, será preciso primeiro fazer o “batismo” – na realidade, um minicurso de política. Antes de votar ou ser votado, o filiado terá que participar de pelo menos uma atividade partidária. Isso além de aceitar a condição de pagar sua contribuição semestralmente. O autofinanciamento é um dos princípios do PT.
Para votar e ser votado, o filiado não poderá mais permitir que um grupo acerte suas contas na última hora, o que já vinha acontecendo nas últimas eleições. Só votará quem estiver em dia quando faltarem 60 ou 90 dias para as eleições internas. A exceção fica por conta só dos pagamentos feitos pelas próprias instâncias partidárias.
Apenas para se ter uma ideia, atualmente os filiados comuns que ganham até três salários mínimos pagam anualmente 15 reais; os que ganham entre três e seis salários contribuem com 0,5% da renda mensal uma vez por ano; por fim, os que ganham mais pagam 1% ao ano. O PT também terá um fundo destinado a financiar as disputas internas. Um exemplo básico para uma legenda que está propondo o financiamento público das campanhas eleitorais e acaba de decidir cercear poderios internos.
Outra mudança interna importante contrariou o corporativismo parlamentar e mostrou a insatisfação com os poderes dos grupos: os mandatos petistas terão número limitado. Senadores poderão exercer no máximo dois mandatos. Vereadores, deputados estaduais e federais ficam limitados em três mandatos.
A regra passa a valer a partir de 2014 e, portanto, não afeta as bancadas atuais do PT. Na prática, a norma vai surtir efeitos em 2026, quando os parlamentares eleitos em 2014 terminam seu terceiro mandato. Também ficou proibido acumular funções executivas no governo e no partido.
Aliás, a limitação do número de mandatos foi uma das surpresas do congresso, decidido no novo sistema de votação eletrônica secreta. A proposta não partiu de nenhum líder petista. Um grupo de delegados de pequenas correntes redigiu o texto, colheu assinaturas e conseguiu a aprovação no plenário.
Foi mais ou menos assim também com a paridade de gêneros nas futuras composições das instâncias e dos cargos de direção. As mulheres de várias correntes se uniram e conseguiram garantir 50% dos postos para as próximas eleições internas. A juventude também garantiu 20% da participação para petistas entre 19 e 30 anos e mais uma cota de representação étnico-racial, com todos os grupos em sistemas de sobreposição.
Com relação ao projeto político, foi reafirmado e destacado o socialismo, a reaproximação dos movimentos sociais e sindicais. Sem esquecer uma certa independência do Palácio do Planalto, com o objetivo de reapresentar à sociedade suas antigas e polêmicas bandeiras, como o marco regulatório para a mídia, defendido desde 1989, além da necessidade de distribuição de terras pela reforma agrária e uma ousadia maior na economia, entre outros temas que andavam sumidos dos debates para não incomodar o governo.
Há seis anos, com os debates acerca da natureza da crise do mensalão, entrou em curso uma tentativa de distanciamento do governo. O processo, no entanto, andava lento. O documento interno reforçou a posição. Agora, se o PT passará realmente a pressionar a coalizão do governo mais à esquerda, ou se vai se acomodar à direita, só a prática dirá.
“Pelo menos sinalizamos um novo caminho e voltamos a fazer política interna”, avalia um dirigente. É que, com a quebra temporária do poder de bloco majoritário, o resultado foi que a maioria política ocupou o lugar da maioria numérica, invertendo a lógica que toma conta do PT desde a formação do velho Campo Majoritário.
“A militância nos mostrou que não é tão difícil governar sem maioria e que é preciso fazer mais política”, definiu o dirigente.
A divisão de algumas correntes, como a Construindo um Novo Brasil (CNB), do ex-presidente Lula, tem sido evidenciada em temas pontuais e ficou mais clara com a reforma estatutária. Para se ter uma ideia, a Comissão de Reforma do Estatuto, encabeçada pelo deputado federal Ricardo Berzoini (PT-SP), da CNB, defendia desde o início o endurecimento para receber os novos filiados. Mas parte da CNB passou a apoiar uma proposta da corrente Movimento PT, que pretendia liberar completamente as contribuições. E um terceiro grupo seguiu indeciso em vários pontos.
No final, venceu parte da proposta de Berzoini, mas com emendas que o surpreenderam, como da limitação dos mandatos. “O congresso foi profundamente livre. Ganhei, perdi votações e me senti muito feliz por ter passado por um processo tão livre.”, disse Berzoini – um dos defensores da tese da maioria política, no lugar da maioria numérica.
“Freio de arrumação”
Francisco Rocha, coordenador da CNB, é um dos mais convictos defensores da necessidade da maioria numérica no partido. Mas avaliou, em entrevista a CartaCapital, após o congresso, que a base partidária deslocou o eixo mais à esquerda e “colocou um freio de arrumação no PT”. Ele nega que tenha ocorrido divisão interna na corrente.
“Funciona mais ou menos assim: a DS (Democracia Socialista, corrente de esquerda que integra o grupo Mensagem ao Partido) nunca vai conseguir nos puxar mais à esquerda se nós não quisermos ir. Agora, é fato que nossos delegados (que são a maioria) deram uma inclinada mais à esquerda. Isso vem pelo freio de arrumação que ocorreu no congresso, principalmente pelo estatuto”, afirmou.
Segundo Rocha, embora tenha aceitado as coligações com o PMDB e aberto caminho para acordos com o PSD do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, a resolução “foi do centro para a esquerda”. “No futuro, o PT irá mais à esquerda, sim. O PT amadureceu”, considerou o dirigente da CNB.
Rocha disse que gostou do resultado surpreendente: “Quem estava lá não era marinheiro de primeira viagem. Eles vieram para sintonizar o conjunto com a realidade, para atualizar o partido com os novos tempos. O resultado do congresso foi um freio de arrumação, seja pelo estatuto, seja pela resolução. Foi uma atualização aos novos tempos sem negar as origens. Eles reafirmaram a vocação de esquerda sem sectarismo, mas também sem hipocrisia”. O socialismo defendido pela maioria do PT enfatiza a garantia de liberdade do mercado.
Vaias e reclamações
Alguns incômodos das bases partidárias com o governo foram evidenciados em pequenos, mas simbólicos, incidentes internos do congresso. Ex-presidente do PT, hoje assessor especial do Ministério da Defesa, José Genoino é uma das estrelas queridas do partido, mas levou vaias da plateia e retomou a palavra para se desculpar. Ele tocou em um assunto delicado para os petistas: a presença das tropas brasileiras no Haiti.
Genoino disse no plenário que a atuação das tropas brasileiras no Haiti destina-se à garantia de “direitos civilizatórios e humanitários”.
Ele argumentou que a presença brasileira tem o objetivo de impedir que americanos, espanhóis e franceses assumam o controle. E foi anunciar que em outubro os batalhões terão redução de 800 homens. “Vamos preparar uma saída responsável, mas garantindo os direitos civilizatórios e humanistas para o Haiti”. Foi vaiado. Uma hora depois, voltou ao microfone para retirar a palavra “civilizatórios” de sua intervenção.
O próprio Lula também fez uma brincadeira, na abertura do congresso, que arrancou vaias, desta vez mais sutis. Em sua fala de dez minutos, ele disse que logo seria preciso pedir uma cota para homens no partido. Alguns delegados retrucaram com vaias. Mas o primeiro recado da disposição dos petistas foi dado diretamente à presidenta Dilma Rousseff.
A segurança da Presidência decidiu fechar as portas do congresso, deixando do lado de fora quase metade dos delegados credenciados, alegando que o salão estava repleto. Os excluídos esmurraram as portas, gritaram e os companheiros que já estavam acomodados nas cadeiras fizeram eco imediato ao protesto. Os incluídos interromperam o evento, até que a Presidência cedeu e liberou o acesso geral. “Essa é a força do PT”, resumiu Dilma, que abriu seu discurso com um elogio ao comportamento dos companheiros durante o incidente.CartaCapital
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