MAURO SANTAYANNA
O ministro Gilmar Mendes
decidiu - conforme a lúcida análise do professor Virgílio Afonso da Silva - que
está acima de todos os poderes, incluído o próprio Judiciário
Publicado na
Carta Maior
Podemos iniciar lembrando
uma série de obviedades. Quando Deus, ou o acaso, fez o homem, deu-lhe o
livre-arbítrio. Os homens, juntos, fazem o povo. O povo, portanto, tem o livre
arbítrio de todos os indivíduos que o compõem, ou, como é possível aferir, da
maioria dos eleitores. Com esse livre-arbítrio, os homens construíram um
sistema de convívio a que chamamos Estado. Para administrar o Estado,
organizou-se a política. A experiência mostrou que, em benefício da ordem e da
coesão da sociedade, era melhor dividir o Estado em Três Poderes. O mais
importante deles, desde o início, foi o Legislativo, composto de homens do
povo, e destinado a elaborar as leis, conforme a vontade e o interesse da
maioria, depois de discussões amplas.
Assim, é o poder legislativo
que, ouvindo os cidadãos, impõe a forma do regime político, garante os direitos
de todos à liberdade e à isonomia, limita-os em benefício da coesão da
sociedade e do exercício da justiça, diante da qual todos são iguais.
O Sr. Gilmar Mendes,
ministro do Supremo Tribunal Federal não se sabe bem para quê, quer inverter a
ordem milenar dos poderes do Estado, e colocar o Judiciário como o mais elevado
deles. Ora, se há poder dependente dos demais é exatamente o Judiciário.
Em nosso sistema, ele
depende do arbítrio do Executivo, que indica os seus membros, e do Senado, que
os aprova, ou rejeita. Mas depende, acima de tudo, do Legislativo que, ao
aprovar as leis, entre elas, as penais, impõe-lhes o módulo de seu poder.
Os Estados Unidos
construíram o seu sistema, em parte sob a influência clássica da República
Romana; em parte sob as idéias democráticas inglesas de Locke e outros de seus
contemporâneos; e, em parte, das idéias federativas das Províncias Unidas dos
Países Baixos.
A Suprema Corte
norte-americana resolveu aproveitar-se desse período de discussões e
indefinições da república, e seu presidente, John Marshall, que era político,
arrogou ao tribunal o direito de arbitrar, em última instância, a
constitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo.
Foi uma decisão americana,
conforme as circunstâncias do tempo, mas
contestadas por três dos
maiores presidentes dos Estados Unidos: Lincoln, Andrew Jackson e Franklin
Roosevelt. O caso de Jackson é bem conhecido. O presidente se negou a proteger
os banqueiros, com seu famoso Banking Veto, e peitou a Suprema Corte,
negando-se a rever sua posição. Roosevelt também desobedeceu à Suprema Corte, a
fim de impor o New Deal, e, sob a ameaça de obter do Congresso o aumento do
número de juízes e a aposentadoria dos mais idosos, conseguiu um acordo
político que favoreceu a implementação do plano de recuperação da economia
americana.
Para o nosso raciocínio, o
melhor exemplo é o de Lincoln. Logo no início da Guerra de Secessão, o
presidente, depois de ouvir seu procurador geral, decidiu suspender o direito
de habeas-corpus, invocando dispositivo constitucional que abria essa exceção,
no caso de rebelião.
Sob a decisão, o comandante
militar da cidade de Baltimore, determinou a prisão do tenente John Merryman,
da milícia estadual, acusado de colaborar com os sulistas.
Merryman apelou para o Juiz
Roger B. Taney, que acumulava seu cargo de Presidente da Suprema Corte com o de
juiz federal no circuito de Baltimore. Como juiz federal, e não da Suprema
Corte, ele concedeu a ordem, determinando ao comandante militar que libertasse
o prisioneiro imediatamente. A ordem foi recusada, com as informações do caso
ao juiz, que a reafirmou, determinando a um delegado federal que fosse ao forte
e prendesse o próprio comandante.
O delegado não se atreveu a
entrar no forte. Taney, então, e já atuando como Presidente da Suprema Corte,
determinou a Lincoln que libertasse o prisioneiro, e submetesse ao seu tribunal
a ordem de prisão de novos acusados de traição – o que o grande Presidente
simplesmente ignorou.
Logo em seguida, o Congresso
deixou claro o direito de o Poder Executivo negar-se a atender à Justiça,
enquanto perdurasse a Guerra Civil.
Na defesa do Estado
republicano, Lincoln agiu assim até a morte de Taney, em 1864, quando nomeou,
para substituí-lo, o juiz Portland Chase.
Acrescente-se que Taney,
considerado bom juiz em outras decisões, era adversário político de Lincoln, e
escravocrata convencido da inferioridade dos negros. Dele é a opinião escrita,
no famoso caso Dred Scott v. Sandford, uma das causas da guerra civil, de que
“os negros não têm quaisquer direitos que os homens brancos sejam obrigados a
respeitar - ( blacks) had no rights which the white man was bound to respect)”.
O ministro Gilmar Mendes
decidiu - conforme a lúcida análise do professor Virgílio Afonso da Silva - que
está acima de todos os poderes, incluído o próprio Judiciário, determinando, a
priori, que o Congresso não discuta projeto de emenda constitucional sobre o
Poder Judiciário.
Ora, o Congresso pode
discutir tudo, e aprovar o que sua maioria decidir, de acordo com a
Constituição. O Congresso é o povo – com suas virtudes, sua força e sua
debilidade – reunido para decidir tudo o que lhe diz respeito. Há mais: em
muitos países, e mesmo nos Estados Unidos, a pátria de John Marshall, a Suprema
Corte não discute a constitucionalidade das emendas, uma vez que, aprovadas,
passam a integrar a própria Constituição e, como tal, devem ser respeitadas e
cumpridas pelo Poder Judiciário.
Acresça-se o fato de que a
emenda não foi ainda discutida amplamente, e pode, eventualmente, até mesmo ser
rejeitada.
É certo que o nosso
Parlamento não é o melhor do mundo, nem o pior. É o que temos. E mudá-lo é
tarefa dos cidadãos, não do Poder Judiciário, e menos ainda do Ministro Gilmar
Mendes, cujo comportamento tem sido estranho, não só em algumas decisões, como
pela sua estreita amizade com homens do estofo moral de Demóstenes Torres.
É lamentável que alguns
senadores o tenham visitado, para dar apoio ao seu propósito estapafúrdio.
O professor Virgílio Afonso,
além dos méritos de seu desempenho acadêmico, possui outra referência moral a
ser destacada: é filho do jurista José Afonso da Silva, por sua vez filho de
lavradores pobres do interior de Minas, que trabalhou como alfaiate para
custear seus estudos em São Paulo, e se tornou um dos mais respeitáveis
constitucionalistas brasileiros.
Gilmar, nós sabemos, é
Gilmar. Nem mais, nem menos.
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