Enquanto isso, os paulistanos tomavam água podre.
Daniel Bramatti
O Instituto Fernando Henrique Cardoso, ONG criada pelo
ex-presidente tucano com a ajuda de grandes empresários, foi contemplado
no ano passado com uma doação de R$ 500 mil de uma empresa estatal do
governo paulista, que no período 2003-2006 foi comandado por Geraldo
Alckmin (PSDB) e Cláudio Lembo (PFL).
O dinheiro saiu da Sabesp - então presidida por outro tucano, Dalmo
Nogueira Filho - e foi direcionado para um projeto de conservação e
digitalização do acervo do instituto, conhecido pela sigla iFHC.
A Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) é uma
das sete empresas que, até o final do ano passado, haviam doado R$
2.095.000,00 para o projeto de preservação e digitalização do acervo do
iFHC, com incentivos fiscais da chamada Lei Rouanet - as contribuições
podem ser descontadas do Imposto de Renda.
O acervo é formado por livros, fotos e obras de arte de FHC e também de
sua mulher, Ruth Cardoso. Reúne não apenas itens coletados durante a
passagem do tucano pela Presidência, mas também da época em que era
professor e um dos líderes da oposição ao regime militar. Entre os
objetos em processo de catalogação estão os presentes que FHC recebeu
durante seu governo - vasos, quadros, tapetes e até capacetes de pilotos
de Fórmula 1.
O projeto de preservação e digitalização do acervo está orçado em mais
de R$ 8 milhões - valor que equivale a cinco vezes o orçamento anual da
Biblioteca Mário de Andrade, a maior de São Paulo, com mais de 3,2
milhões de itens.
O site do iFHC afirma que a digitalização dos documentos será feita com
softwares e equipamentos cedidos pela IBM e pela Sun Microsystems do
Brasil, mas não faz referência à Sabesp e aos outros patrocinadores, nem
detalha como serão aplicados os R$ 2 milhões já recebidos. Ontem à
noite, a entidade divulgou uma nota sobre o assunto (leia aqui).
O Instituto Fernando Henrique Cardoso é uma espécie de "organização
ex-governamental" - reúne em seu conselho deliberativo diversas estrelas
dos dois mandatos presidenciais tucanos, entre eles ex-ministros como
Pedro Malan (Fazenda), Luiz Carlos Bresser-Pereira (Administração) e
Celso Lafer (Relações Exteriores e Desenvolvimento).
A entidade tem como fonte de inspiração as fundações mantidas por
ex-presidentes norte-americanos. Mas as semelhanças são limitadas. A ONG
do ex-presidente Bill Clinton, por exemplo, atua na prática: apóia e
implementa programas de combate à aids, de redução do custo de
medicamentos e de controle do aquecimento global, entre outros. Também
administra uma biblioteca pública no Estado de Arkansas que recebe cerca
de 300 mil visitantes por ano.
Já o iFHC afirma ter dois objetivos básicos: o primeiro é a preservação
do próprio acervo do ex-presidente e de sua mulher; o segundo é a
promoção de debates e seminários - que são restritos a convidados. O
site do instituto na internet destaca que "o iFHC, entidade privada, não
está aberto à visitação pública".
O site também anuncia que parte do acervo será aberto ao público quando
for concluído seu processo de catalogação e digitalização. Não há
informações sobre a possibilidade de pesquisar os itens mais
interessantes, do ponto de vista histórico e jornalístico: as gravações e
anotações que o ex-presidente fez, durante seus oito anos de governo,
sobre temas polêmicos como privatizações e reeleição.
O auxílio estatal ao instituto, via Sabesp, foge à regra: o iFHC nasceu e
é mantido graças a contribuições privadas. Quando inaugurado, em 2004,
tinha R$ 10 milhões em caixa. O tucano começou a pedir doações a
empresários quando ainda era presidente.
Em um jantar no Palácio da Alvorada, em 2002, FHC expôs os planos de sua
futura ONG a convidados como Emílio Odebrecht (grupo Odebrecht), Lázaro
Brandão (Bradesco), Olavo Setubal (Itaú), Benjamin Steinbruch (CSN),
Pedro Piva (Klabin) e David Feffer (Suzano). Na época, o colunista Elio
Gaspari criticou o fato de a coleta de fundos ser feita entre
representantes de empresas financiadas pelo BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social) ou contempladas no processo de
privatização.
Já as relações da Sabesp com políticos do PSDB não constituem propriamente uma novidade. No ano passado, reportagens da Folha de S.Paulo
revelaram que a estatal patrocinou uma edição da revista Ch'an Tao, do
acupunturista do então candidato à Presidência Geraldo Alckmin - o
tucano foi assunto de capa e apareceu em 9 das 48 páginas da publicação.
A estatal também destinou R$ 1 milhão de sua verba publicitária para uma
editora e um programa de TV do deputado estadual Wagner Salustiano
(PSDB). O Ministério Público abriu uma investigação sobre o eventual uso
de empresas do Estado para beneficiar aliados de Alckmin na Assembléia
Legislativa.
Terra Magazine procurou ontem a Sabesp e FHC, em busca de
esclarecimentos sobre a doação de R$ 500 mil. Não houve resposta da
estatal. A assessoria do iFHC informou apenas que o ex-presidente não se
encontrava no local.
Além da Sabesp, da Sun e da IBM, os outros patrocinadores do projeto de
digitalização do iFHC são as empresas Philco Participações (R$ 600 mil),
Arosuco Aromas e Sucos (do grupo Ambev, R$ 600 mil), Mineração Serra
Grande (do grupo Anglo-American, R$ 200 mil), Norsa Refrigerantes
(representante da Coca-Cola no Nordeste, R$ 140 mil), Rio Bravo
Investimentos (R$ 30 mil) e BES Investimentos do Brasil (R$ 25 mil).
A Rio Bravo Investimentos foi fundada e é dirigida por Gustavo Franco,
que presidiu o Banco Central nos anos FHC. A Norsa Refrigerantes têm
entre seus proprietários outro tucano famoso, o senador Tasso Jereissati
(CE). O BES Investimentos faz parte do grupo português Espírito Santo,
cujo representante no Brasil, Ricardo Espírito Santo, teve seu nome
associado ao escândalo do mensalão por supostas relações com o
publicitário Marcos Valério. Em 2005, o banqueiro foi acompanhado por
Valério a uma reunião com o então ministro da Casa Civil, José Dirceu.
Em 2002, Ricardo Espírito Santo também estava no jantar do Palácio da
Alvorada em que FHC pediu contribuições para a criação de sua ONG.
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