Luiz Gonzaga Belluzzo
No início da década dos 90, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial anunciaram a nova agenda de reformas para os países em desenvolvimento. Entre as recomendações figurava com brilho e aplomb a abertura da conta de capitais. Os modelos teóricos utilizados pelo Fundo Monetário e pelo Banco Mundial garantiam que a abertura e a desregulamentação financeiras promoveriam a atenuação das flutuações da renda e, sobretudo, do consumo nos países da periferia.
Os modelos tinham como premissa um comportamento anticíclico dos movimentos de capitais, ou seja, a entrada líquida de dinheiro externo seria capaz de atenuar as flutuações do produto, do emprego e do consumo.
Nas últimas duas décadas, não escassearam provas da natureza pró-cíclica dos movimentos de capitais privados, incapazes de se comportar de acordo com as prescrições dos manuais de economia internacional. Explico o pró-cíclico: quando abraçam as moedas frágeis dos países emergentes, os capitais apaixonados exageram nas juras de amor. As moedas se valorizam e reduzem a competitividade das exportações, quando não estimulam perigosas incursões de exportadores em operações estapafúrdias com derivativos. Com o mesmo fervor, os capitais abusam do desprezo no momento em que decidem abandonar a presa. Por isso causam estragos na auto-estima da vítima, que se entrega aos desesperos das crises cambial e financeira. Veja o leitor: nessa hora aziaga, entre os achaques e moléstias que atazanam os mercados, estão a volatilidade indesejada das taxas de câmbio dos emergentes e a inconveniente valorização do dólar e do iene.
A malta de emergentes é testemunha de que, no período de muitos beijos e alguns tapas, os rigores das políticas monetárias empurram a valorização da moeda local, já excitada pela salivação dos que buscam melhores rendimentos. Num ambiente de baixa inflação e ganhos modestos nos ativos de baixo risco e reputação ilibada, os diferenciais de juros inoculam o vírus da euforia cambial, prelúdio da derrocada da moeda nacional, da recessão e do constrangimento às políticas fiscais e monetárias anticíclicas.
Quarta e quinta-feira últimas, George Soros e Martin Wolf, no Financial Times, dissertaram a respeito das políticas adequadas para enfrentar a crise que ora nos atormenta. Wolf detonou os anjos da purificação do mundo: “A noção de que uma recessão rápida purificaria o mundo é ridícula... A única forma de deixar o setor privado se desalavancar, sem falência em massa, é substituindo (os ativos depreciados) pelos ativos que todos querem: a dívida do governo”. No caso, o objeto de desejo, nem tão obscuro, é a dívida do governo americano.
George Soros apoiou as iniciativas do Federal Reserve e do FMI. O banco central dos Estados Unidos já promovia a troca de moedas entre os bancos centrais, providência que na quarta-feira incluiu o Brasil, entre outros emergentes. O FMI aprovou uma linha de liquidez de liberação rápida para países bem-comportados. O Brasil está nessa. Os mercados de câmbio se acalmaram, ao perceber que o governo americano e o Fundo estão dispostos a manter sob controle a súbita e perigosa paixão dos mercados pelo dólar.
Quando os mercados globais cambaleiam e revertem os motores, a macacada busca a segurança dos ativos públicos denominados na moeda de reserva. Pouco ou nada valem as taxas de câmbio flutuantes, agredidas com a mesma virulência que machucam as taxas fixas ou assemelhadas. Em tais circunstâncias, a política de metas de inflação fica encalacrada entre cuidar das tendências recessivas da economia e aplacar o deslizamento do câmbio e seus efeitos sobre os preços domésticos. Escapam da maldição países que cuidaram de prevenir os ingressos abundantes e as saídas desastrosas do capital-dinheiro. As decisões do Fed e do FMI foram providenciais: por estas bandas, a tigrada da bufunfa já gritava em uníssono ser preciso subir os juros e cortar o gasto, ajustar o crescimento da economia brasileira ao tamanho da crise. Recomendam a recessão purgativa.
Na posteridade da crise asiática, os governos e o FMI ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para as assimetrias e riscos implícitos na movimentação desimpedida de capitais. A palavra de ordem era a reforma da arquitetura financeira internacional. A reação dos mercados e do governo americano – aconselhado pelos sábios Robert Rubin e Lawrence Summers – foi negativa. O FMI enfiou a viola no saco.
Angustiado com as tropelias da finança internacional, o presidente Nicolas Sarkozy, entre outros, evocou Bretton Woods, a reunião de 1944 que deu origem à ordem econômica do pós-guerra. A idéia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras monetárias capazes de garantir o ajustamento dos balanços de pagamentos, ou seja, o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias. Tratava-se também de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
Keynes, o delegado da Inglaterra, propôs a Clearing Union, uma espécie de banco central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.
A despeito de sua rejeição à relíquia bárbara, Keynes aceitou a manutenção do ouro como “âncora” nominal do seu sistema monetário, mimetizando a relação que a moeda bancária mantinha com as reservas metálicas no padrão-ouro clássico. Mas o metal seria uma espécie de “rainha da Inglaterra” do sistema monetário, já que nenhum papel efetivo lhe seria concedido na liquidação das transações e dos contratos – função que seria exercida exclusivamente pela moeda bancária internacional, administrada pelas regras da Clearing Union.
É provável que Keynes não estivesse disposto a colocar em risco a confiabilidade do novo padrão monetário, e muito menos pretendesse “desvalorizar” as reservas-ouro acumuladas pelos Estados Unidos nos anos 20, 30 e 40 (em 1948, os EUA detinham cerca de 72% das reservas-ouro mundiais). Debates travados no Senado revelam que era forte a resistência política dos americanos à abolição do ouro como fundamento da nova ordem monetária internacional.
O plano de Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro enquanto último ativo de reserva do sistema, instrumento universal da preferência pela liquidez. Buscava, portanto, uma distribuição mais eqüitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isso significava, na verdade – dentro das condicionalidades estabelecidas – facilitar o crédito aos países deficitários e punir os países superavitários.
O propósito era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”, como repetiu seguidamente nos trabalhos preparatórios da Conferência de Bretton Woods. O plano – uma utopia monetária – não só era excessivamente avançado para o conservadorismo dos banqueiros privados, como também inconveniente para a posição amplamente credora dos Estados Unidos, pois anularia o poder de seigniorage do dólar como moeda-reserva. A faculdade de usar sua moeda como meio de pagamento universal conferiu e ainda vem conferindo aos Estados Unidos grande flexibilidade na gestão da política monetária e na administração do balanço de pagamentos.
A solução finalmente adotada na reunião de 1944 ficou mais próxima dos interesses dos credores do mundo. Assim, a Clearing Union perdeu a disputa para o Fundo Monetário, cuja capacidade de provimento de liquidez – em caso de desajustes temporários de balanço de pagamentos – estava limitada pelo valor das cotas dos países membros, calculado pela participação de cada um no comércio internacional. O bancor foi derrotado pelo dólar, que assumiu o papel de moeda-reserva, ancorado na conversibilidade com o ouro à razão de 35 dólares por onça troy.
Já a proposta keynesiana de controle de capitais e do câmbio foi incorporada ao artigo VI dos estatutos do fundo como faculdade concedida aos países que estivessem atravessando problemas agudos de balanço de pagamentos. Os controles cambiais estavam vedados para as transações correntes, salvo no caso de o Fundo declarar uma “moeda escassa”, conforme o artigo VII, o que permitiria aos demais membros impor controles às transações com essa divisa.
O sistema de Bretton Woods nasceu de um compromisso implícito: o benefício da seigniorage concedido ao país emissor da moeda-reserva, os Estados Unidos, foi compensado pela liberdade, atribuída aos demais países membros, de adotar políticas de crescimento e estratégias mercantilistas de comércio exterior.
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