Mino Carta
O presidente Lula diz que na vida do brasileiro a crise é constante. A crise financeira desaba sobre o mundo, mas nós aqui, abaixo do Equador, conhecemos o assunto, ao menos na sua acepção mais vasta, desde sempre. A começar por ele, Lula, imigrante criado pela mãe, abandonada pelo pai e destemida trabalhadora, juntamente com quase um time de futebol de filhos.
Conheço bem a infância de Lula, evocada na primeira entrevista que ele me deu, faz 31 anos. Contou-me que a mãe enterrava até os ombros os menores no quintal para que não escapassem, enquanto fazia faxina na casa dos ricos. Conheço também o humor do presidente e sua argúcia. Na noite de segunda-feira passada fez um belo e honesto discurso ao encerrar a festa de CartaCapital, contada mais adiante nesta edição.
Discurso otimista, como se espera de quem amargou três derrotas eleitorais sem sofrer maiores abalos interiores, ganhou largamente em seguida por duas vezes e se tornou o presidente mais popular do Brasil desde Deodoro, sem exclusão de Getúlio e Juscelino.
Lula enxerga na crise mundial uma oportunidade importantíssima para os países emergentes, capacitados a forçar o definitivo funeral do neoliberalismo que em pouco mais de três décadas conseguiu exasperar a desigualdade, aprofundar o abismo entre ricos demais e pobres além da conta, precipitar a degradação de inteiros países. Não faltaram as flechadas para aqueles que torcem contra, y que los hay, los hay. Na ala de frente, a mídia nativa. E não faltou a recordação de que ali, na platéia tomada pela fina flor do empresariado brasileiro, nem todos estavam com ele em 2002 e 2006.
O presidente também faz referências ao império, e eu soube dele, em conversa lateral, que Bush júnior o procurava para uma conversa telefônica, já marcada para o dia seguinte. Obama, obviamente, surgiu em cena. No discurso, Lula acentuou a importância da provável eleição do primeiro presidente negro, por si só sinal de mudança radical. Como o Brasil o foi no caso de um ex-metalúrgico nordestino.
Recordo que, durante uma longa entrevista que me deu no Palácio do Planalto em novembro de 2005, o presidente me disse: “Você sabe que nunca fui de esquerda”. Neste ponto discordo dele. Sempre foi, ao menos no sentido apontado por Norberto Bobbio, aquele a ser seguido por quem sabe que a liberdade sozinha não basta se não se presta à busca corajosa e incessante da igualdade. Quanto a Obama, creio, e espero, que se trate de alguém afinado com as raízes autênticas do Partido Democrata, afirmadas exatamente depois da crise de 1929. Em 1932, Roosevelt chegou ao poder. Até então fora considerado político menor, de escasso tirocínio. Despreparado, diriam alguns colunistas brasileiros. Reeleito quatro vezes, foi o melhor presidente dos Estados Unidos no século passado, talvez o melhor em todos os tempos.
A seu modo, secundado por Keynes, Roosevelt fez um governo de esquerda e fixou algumas diretrizes, no campo social, que continuaram a dar frutos enquanto os democratas governaram. Esta quadra favorável, observada deste ângulo, esgota-se com a supremacia republicana, que se inicia por volta de 1970.
Sim, em épocas democráticas houve o terror macarthista, a tentativa de invasão de Cuba, a Guerra do Vietnã, a CIA a promover golpes globo afora. Nada disso se habilita a brilhar na memória da história, a qual registrará que por meio dos eventos bélicos Tio Sam pretendia consolidar sua condição de império ocidental em meio à Guerra Fria. Com resultados pouco animadores, a bem da verdade.
Vale dizer, porém, que em termos de desenvolvimento econômico e social, os Estados Unidos viveram à sombra do Partido Democrata um período muito favorável. E se Obama fosse um Roosevelt negro?
Fonte: CartaCapital.
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