Gilson Caroni Filho
Jornal do Brasil - 22/01/2010
RIO - São conhecidos os setores da sociedade brasileira que reagiram negativamente às propostas contidas no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, divulgado há três semanas pelo governo. A gritaria englobou a grande imprensa corporativa, segmentos conservadores da Igreja Católica, além de ilustres representantes do latifúndio. Todas essas forças e personalidades compreenderam lucidamente, de acordo com seus interesses, que o objetivo do texto não era o alardeado revanchismo contra os militares mas a fixação de diretrizes que consolidam avanços democráticos. E é contra isso que se debatem, através de suas entidades representativas e de uma imprensa que vê no jornalismo decente o anátema mais temido.
A criação da Comissão de Verdade e Reconciliação para investigar os crimes da ditadura militar no Brasil não pode ser entendida como precipitação de uma “esquerda radicalizada”. Sem se intimidar com pressões estreladas, a proposta tem como principal mérito estabelecer, no papel, a diferença entre combate e covardia, entre a verdade e a mentira. Com uma transparência antes inalcançada, a questão democrática revela-se inextrincavelmente entrelaçada ao resgate da memória histórica.
Longe de representar uma rachadura no núcleo progressista do governo, a postura da Secretaria dos Direitos Humanos configura uma linha de comportamento político-ideológico coerente, corajoso e responsável. Não há por que recuar por conta de uma possível contaminação eleitoral, pela associação da iniciativa com a candidatura da ministra Dilma Rousseff. Não há imagem arranhada quando os procedimentos são nítidos e cristalinos. Como depende de produção legislativa para ser efetivado, o Plano, em toda sua larga extensão, não é um pacote jogado sobre as instituições. Mas um rico apanhado sobre as demandas efetivas da sociedade civil.
Publicamente, a cidadania se confronta com um fato: não se constrói democracia com “prestativas” notas de clubes militares. Não é possível a eterna conciliação em arquitetura engenhosa e heterogênea como a que foi montada no governo Lula. Chega a hora da apresentação da fatura e, em momentos decisivos, é preciso firmeza para ratificar o combate de uma esquerda que se caracterizou por sua luta no pantanoso terreno dos direitos cívicos plenos. Se a verdade não é bem-vinda para a direita, não há que se sufocá-la por um perdão decretado como “amplo, geral e irrestrito” O realismo político não pode prescindir da arte de se reinventar.
No calor do enfrentamento, duas propostas voltam a moldar o debate. A primeira defende que o campo democrático-popular deve escamotear sua busca pela verdade, postergando-a para quando as “condições o permitirem”. Essa é uma proposta capitulacionista. Não enfrenta o problema real de uma sociedade que se quer ver livre de um arcabouço legal arbitrário. Além disso, tem um viés marcadamente golpista, ao procurar manipular e instrumentalizar o movimento democrático, sugerindo que, passados mais de 26 anos, as questões centrais da democracia devem permanecer em obscura clandestinidade.
Como escreveu Mino Carta, “é da natureza da tortura que o torturador e o Estado que acoberta a tortura sejam levados a mentir”. Em janeiro de 2010, em face das situações concretas colocadas pelo processo político, é fundamental que o capuz que protegeu o arbítrio seja rasgado pela democracia. Há um espaço social que se abre. Deixar de ocupá-lo, sob qualquer pretexto, não é apenas um erro tático mas uma injustificável apologia da inércia. Não se constroem instituições democráticas, pluralistas, livres e participativas cortejando quem pretende destruí-las.
A liberdade e a igualdade formais do liberalismo clássico de nada valem se não se concretizam os princípios básicos da dignidade da pessoa. Fazer disso uma bandeira eleitoral é apostar no que há de mais perigoso no jogo político: continuar alimentando um caldo de cultura política que não permite a plena fruição dos direitos humanos por todos.
Gilson Caroni Filho é sociólogo
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