Gilberto Bercovici e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima
assinam artigo publicado pelo Viomundo em que defendem a constitucionalidade da
proposta que submete decisões do Judiciário ao Legislativo; "Entendemos
que é ela [PEC 33] absolutamente constitucional e, em nenhum instante de seus
termos, na forma como aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça da
Câmara dos Deputados, viola dispositivos do § 4º do art. 60 da Constituição
Federal, notadamente a radical separação de poderes caracterizadora da forma
presidencialista"
247 - "Entendemos que é ela [PEC 33] absolutamente
constitucional e, em nenhum instante de seus termos, na forma como aprovada
pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados, viola
dispositivos do § 4º do art. 60 da Constituição Federal, notadamente a radical
separação de poderes caracterizadora da forma presidencialista", dizem, em
artigo publicado pelo site Viomundo, os juristas Gilberto Bercovici, professor
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e Martonio Mont'Alverne
Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município
de Fortaleza.
Leia o artigo, embasado em Espinosa e Kant:
Bercovici e Lima: Judiciário e STF não só podem, como devem
ser controlados
SEPARAÇÃO DE PODERES E A CONSTITUCIONALIDADE PEC Nº 33/2011
Gilberto Bercovici e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima [1].
A semana de 21 a 27 de abril movimentou as instituições
constitucionais brasileiras.
No dia 24 o Min. Gilmar Mendes deferiu medida liminar em
mandado de segurança contra o Projeto de Lei nº 4.470/2012 do Senado Federal, o
qual estabeleceria "que a migração partidária que ocorrer durante a
legislatura, não importará na transferência dos recursos do fundo partidário e
do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão".
A parte final da decisão entendeu que
"(i) a excepcionalidade do presente caso, confirmada
pela extrema velocidade de tramitação do mencionado projeto de lei – em
detrimento da adequada reflexão e ponderação que devem nortear tamanha
modificação na organização política nacional; (ii) a aparente tentativa
casuística de alterar as regras para criação de partidos na corrente
legislatura, em prejuízo de minorias políticas e, por conseguinte, da própria
democracia; e (iii) a contradição entre a proposição em questão e o teor da
Constituição Federal de 1988 e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal na ADI 4430. A aprovação do projeto de lei em exame significará, assim,
o tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos em uma mesma
legislatura. Essa interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência
democrática, afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos
específicos" [2].
No mesmo dia 24 de abril, a Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição nº
33, de 2011, a qual "altera a quantidade mínima de votos de membros de
tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito
vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso
Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à
Constituição" [3].
Parlamentares e Ministros apressaram-se em manifestações
públicas em todos os sentidos. Sobre o primeiro caso – Projeto de Lei nº
4.470/2012 – o próprio Presidente da Câmara dos Deputados não deixou dúvidas
sobre sua divergência com a decisão proferida pelo Ministro Relator no Supremo
Tribunal Federal.
Quanto ao segundo caso — Proposta de Emenda à Constituição
nº 33, de 2011 – o mesmo Presidente da Câmara defendeu a necessidade de estudos
sobre o assunto.
Anteriormente ao nosso interesse neste breve texto, é
necessário esclarecer que democracia é conflito.
A maturidade de uma democracia política afere-se exatamente
pela capacidade de seu sistema constitucional em resolver os conflitos, sem que
tal resolução venha a seduzir setores da mesma sociedade a pensarem em
alternativas fora da democracia, fora da disputa política legitimada pelo poder
constituinte, como é o caso do Brasil e de sua constituição dirigente.
Como não poderia deixar de ser, é nossa Constituição Federal
provocadora e solucionadora dos conflitos.
Portanto, assumimos a posição de que direito constitucional
e jurisdição constitucional nada mais são do que direito político, e que,
qualquer questão de controle da constitucionalidade será sempre uma questão de
poder constituinte, ou, em outras palavras: será, novamente, uma questão
política.
No Brasil e em qualquer país do mundo. A política a tentar
esconder a política é que consiste numa atitude fora da democracia, devendo,
desta maneira, ser banida dos embates democráticos e republicanos.
Relativamente ao controle da constitucionalidade temos que
registrar sem eufemismos: quem lida com controle da constitucionalidade
conviverá sempre com a real possibilidade de ultrapassar o texto
constitucional, ou melhor, de ir além – ou aquém – do poder constituinte.
O problema passa, então, a ser a qualidade democrática do
controlador da constitucionalidade e, sobretudo, se sobre este controlador
paira algum instrumento de controle direto da parte da sociedade.
Deve ser ressaltado desde já que a legitimidade do
legislativo decorre diretamente do poder constituinte, já que todos os seus
integrantes são eleitos diretamente pelo povo; a legitimidade do judiciário
advém da Constituição.
Trata-se de uma legitimidade indireta.
Acaso seja aprovada a PEC nº 33/2011 ter-se-á o conflito,
não a crise.
Não vemos como possa vir esta eventual aprovação desencadear
crise, uma vez que, em seu próprio texto é extremamente limitativa e não se
pode imaginar, com sinceridade, que todos os dias o Congresso Nacional esteja a
reapreciar decisões do Supremo Tribunal Federal, ou sejamos todos os
brasileiros chamados a manifestar-nos, por meio de plebiscito, a respeito
destas decisões. Pelo simples e realista fato de que não se tem registro deste
cenário na história constitucional brasileira, tampouco noutras sociedades.
Interessa-nos aqui a discussão em torno da Proposta de
Emenda à Constituição nº 33, de 2011.
Entendemos que é ela absolutamente constitucional e, em
nenhum instante de seus termos, na forma como aprovada pela Comissão de
Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados, viola dispositivos do § 4º do
art. 60 da Constituição Federal, notadamente a radical separação de poderes
caracterizadora da forma presidencialista.
Procuraremos sustentar nossa argumentação com base da
filosofia política laica e revindicadora da democracia, a consolidar-se a
partir do século XVII, mas cujos postulados são detectados quase cem anos
antes.
Baruch de Espinosa é considerado o grande formulador da
defesa da liberdade, em toda a dimensão que o termo pode ensejar.
Quando Espinosa adverte-nos de que homens bons e corretos
podem subir ao cadafalso ou serem enviados ao exílio, também lembra que "é
impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam" [4].
Desta observação de Espinosa descende a liberdade de
manifestação de pensamento ardorosamente tomada como primeira reivindicação, ao
lado da liberdade de ir e vir, do conceito de democracia do Iluminismo
revolucionário.
Como Espinosa não é um filósofo da teologia – quem faz da
razão e da filosofia servas da fé com certeza "ensandecerá" [5] – sua
afirmação sobre a liberdade de manifestação de pensamento assenta-se no
elemento cotidiano da vida de uma república, a demonstrar o afeto, a vontade de
assim viverem todos, sob leis, mesmo que vícios sociais sejam praticados e não
tenham como ser punidos como a avidez e inveja.
Espinosa é também o pensador da tolerância, dado que sua
condição judia de origem portuguesa e perseguido pela Inquisição, obrigou sua
família a ir para a tolerante Holanda.
Como se vê, está em Espinosa, e em seus autorizados
intérpretes, a rejeição da moral e do moralismo como instrumento mediador da
construção da vida em comum do homem, com a mesma intensidade que está presente
a política; e esta não deve cair nas "armadilhas da moral e da tradição
jusnaturalista" [6].
Constata-se, desta forma, que Espinosa não nega a
"possibilidade de que os conflitos permaneçam existindo após a fundação da
Cidade" [7], por força da pluralidade da natureza humana.
O que é reafirmado é o lugar das instituições, portanto da
política e de seus desdobramentos, como essenciais à construção da
tranquilidade social.
Referida tranquilidade em nada se relaciona com a ausência
dos conflitos, já que suas soluções encaminham-se pela política; distante esta
do "voluntarismo moralista"
[8].
Qual a relação desta primeira reflexão com o tema da PEC nº
33/2011?
Ora, o parlamento tem o direito de manifestar-se como bem
entender, até o final de sua competência constitucional, sem ser molestado por
quem que seja.
Proposta de emendas à Constituição, projetos de leis
complementares e ordinárias, de decretos legislativos nada mais são do que
projetos, como bem os definem seus termos constitucionais.
Não possuem eficácia nem vigência. Não estão no mundo.
Pela nossa Constituição, o controle judicial da
constitucionalidade incide sobre uma espécie normativa; jamais sobre uma
proposta que sequer concluiu todo o processo legislativo.
Reside nesta singela razão o motivo pelo qual o Poder
Judiciário pode controlar a constitucionalidade por inobservância do processo
legislativo, que também é devido processo legal. Mas tudo isto após gerada a
vida legislativa da espécie normativa; não antes de seu nascimento.
Igualmente ancorada neste motivo a impossibilidade de serem
expedidas medidas liminares.
Não há danos políticos a serem temidos.
Tão logo uma espécie normativa absolutamente
inconstitucional – formal e/ou materialmente — ganhe "vida" incidirá
sobre ela o controle judicial da constitucionalidade.
Até lá, nada se pode fazer, a exemplo de outras situações,
para lembrarmos a lição de Paulo Brossard, quando Ministro do Supremo Tribunal
Federal e de seus votos nos mandados de segurança contra atos da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal [9].
Está-se diante, na presidencialista separação de poderes,
das questões políticas e, nestas, cada um decide na conformidade da disputa
ocorrida nas eleições, defendendo seus interesses.
Um pensamento atrai o outro. Tem sido crença disseminada no
chamado "neconstitucionalismo" ou "normativismo
constitucional" a certeza de que a efetivação constitucional ou as
deficiências de nossa democracia residem na interpretação das normas ou que
todos os desafios poderiam ser resolvidos com a articulação interna dos
dispositivos constitucionais.
Em tais abordagens, o papel da política, com todos os seus
atores, é praticamente desprezado.
Não é necessário ir muito longe para enxergar a extrema
fragilidade destas teses e a pobreza de sua força explicativa para dar conta
dos conflitos democráticos, como aqueles que enfrentamos nestes dias.
Há mais a autorizar, do ponto de vista da teoria da
democracia moderna, a constitucionalidade da PEC nº 33/11. E, mais uma vez,
Espinosa oferece-nos a indicação do bom caminho a ser seguido. "Políticos
e profetas e doutores" da Igreja" ocupam centralidade nas formulações
filosóficas políticas de Espinosa [10].
A disputa será sempre — entre todos estes, ou entre uns e
outros — para a tentativa de fundação e manutenção da república na perspectiva
de superação do medo, da barbárie e da tirania que poderá acometer a qualquer
sociedade.
Porém, seriam os profetas e doutores ao procurarem, por meio
de sua leitura e interpretação da sagrada escritura, com a consequente extensão
desta revelação particular à sociedade, os responsáveis pela construção e
manutenção o poder político.
Neste compasso, somente a lei revelada é que seria divina,
vez que originada do debate de poucos, dos particulares. "O mais
extraordinário para Espinosa é a demonstração de que a lei divina só será lei
se não divina e só será divina se não for lei" [11].
Tais elementos estão internos à sociedade, e não externos a
ela; "Se uma das teses fundamentais da política espinoseana é a de que o
inimigo do corpo político é interno a ele e encarna-se nos particulares que
enquanto particulares desejam apossar-se do poder, compreende-se que o caráter
privado do poder eclesiástico apareça como um dos inimigos políticos principais
porque se torna poder teológico-político" [12].
O aprisionamento do saber num só corpo consiste para
Espinosa [13], aqui ao contrário de Hobbes, na possível fonte de instabilidade
política. Se se objetiva a estabilidade da política devem ser ouvidos
diferentes atores, de modo que seja improvável a corrupção da maioria por
poucos: "Com efeito, o que determina a vontade de uma assembleia
suficientemente numerosa é mais a razão do que a paixão" [14]. Eis aqui o
temor de Hobbes que vem a ser o destemor espinoseano.
Ao promulgar-se a Emenda Constitucional 45/2004 reafirmou-se
não somente a súmula vinculante como a pretensão do Supremo Tribunal Federal de
revestir-se na condição de soberano, como se fosse o único corpo político a
deter a última palavra sobre quase tudo.
O ativismo judicial disseminado em todas as instâncias do
judiciário nacional confirmam nossas palavras, mesmo a qualquer olhar
desatento.
Cotidianamente, presencia-se verdadeiro esvaziamento –
Ausräumung – da política e dos políticos pelo poder judiciário. Surpreende – no
Brasil e mesmo nas democracias europeias ou dos Estados Unidos – que pouco
enfrentamento tenha tal cenário desencadeado da parte da sociedade e de outros
poderes políticos.
Na verdade, a discussão a envolver a constitucionalidade do
efeito vinculante no Brasil após 1988 tinha-se concluído com o julgamento da
ação declaratória de constitucionalidade nº 1, cuja relatoria coube ao Ministro
Moreira Alves.
Como preliminar sobre a constitucionalidade da Emenda
Constitucional nº 03/1993, foi possível ao Relator aprovar a astuta tese de que
o direito à ampla defesa "com os meios e recursos a ela inerentes",
previsto pelo art. 5º, LV da Constituição Federal somente se aplica aos
processos subjetivos, "para a defesa concreta de interesses de alguém
juridicamente protegido"; e não aos processos objetivos, como os de
controle concentrado da constitucionalidade [15].
Apesar de a Constituição da República não impor este limite,
de os direitos e garantias individuais serem cláusula pétrea, e de o rol de
direitos e garantias individuais do art. 5º poder ser somente alterado
"para mais", inexistiu impedimento a que o Supremo Tribunal Federal
realizasse autêntica revelação do poder constituinte, trazendo para si o
controle da política, o que acabou por se confirmar de 1993 aos nossos dias.
Há mais: como único ator institucional a ter o poder de
decisão para reforma de suas próprias súmulas vinculantes, o Supremo Tribunal
Federal desvincula-se de si próprio, procurando ratificar sua soberania sobre o
poder constituinte.
O desafio aqui, quanto à PEC nº 33/2011 é que ela propõe o
retorno à situação de destaque do poder legislativo.
A rediscussão sobre os limites da jurisdição constitucional
nada tem fora do contexto democrático de 1988.
Afinal, em todo o mundo, intelectuais sempre se dedicaram a
este tema [16], não desencadeando nenhuma reação que sequer pudesse ser, de
longe, qualificada de "morte ao tribunal", contribuindo, ao
contrário, com a maturidade dos conflitos democráticos.
Somente soluções fora da democracia é que poderiam estranhar
a supremacia do poder legislativo ao longo do pensamento político moderno.
Na sua Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant não deixa
dúvidas quanto à preponderância do poder legislativo sobre o judiciário.
Pertence a Kant a afirmação de que "Todo Estado contém
em si três poderes, isto é, a vontade geral se une em três pessoas políticas
(trias politica): o poder soberano (a soberania), que reside no poder
legislativo; o poder executivo, que reside em quem governa (segundo a lei) e o
poder judiciário, (que possui a tarefa de dar a cada um o que é seu, na
conformidade da lei), na pessoa do juiz (...)" [17].
Interpretação segura a respeito do postulado de Kant que
afirma a supremacia do poder legislativo é presente na obra de Norberto Bobbio,
quando este, recorrendo à Metafísica dos Costumes, entende que "Apesar da
afirmação da subordinação de um poder ao outro, o fundamento da separação dos
três poderes é ainda a supremacia do poder legislativo sobre os outros dois poderes:
o poder legislativo deve ser superior porque somente ele representa a vontade
coletiva" [18].
Antes de Kant, Rousseau defendeu também a supremacia do
legislativo: "O poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo
é o cérebro, que dá o movimento a todas as partes. O cérebro pode cair em
paralisia e o indivíduo prosseguir vivendo. Um homem fica imbecil e vive, mas
assim que o coração cessar suas funções, o animal está morto. Não é pela lei
que o Estado subsiste, mas pelo poder legislativo" [19].
O retorno da palavra final ao poder legislativo – somente em
casos excepcionais, como deseja a PEC 33/2011 – apenas reorienta o que já se
conhece.
Se a Constituição Federal manifesta-se como democrática, é
óbvio que não tem ela como escapar da tradição democrática em cuja história se
inserem sua origem, suas disputas a darem-lhe sentido concreto na vida da
sociedade.
Como poderia cogitar-se de comprometimento da cláusula de
separação de poderes se o poder constituinte é que dará o último sinal?
Não fosse assim, qual o sentido de referir-se a PEC nº
33/2011 à forma plebiscitária?
O ponto principal aqui é a polêmica travada sobre a proposta
de emenda constitucional, vista por seus opositores como grave ameaça à
autonomia e independência do Poder Judiciário, o que comprometeria, inclusive,
o regime democrático e o princípio da "separação de poderes".
Em nossa opinião, trata-se de um debate equivocado.
Em primeiro lugar, porque os opositores da PEC estão
confundindo a posição institucional do Poder Judiciário no regime
constitucional. Falta, pelo visto, relembrar a velha e célebre distinção criada
por Sieyès, ainda em 1789, entre poder constituinte e poderes constituídos
[20].
Em segundo lugar, a "separação de poderes" não é
ameaçada pelo maior controle do Poder Judiciário por parte do Poder
Legislativo, pelo contrário.
Para os opositores da PEC nº 33/2011, o Supremo Tribunal
Federal e o Poder Judiciário não poderiam ser controlados, pois perderiam sua
independência, sua autonomia, sua capacidade de fiscalizar livremente as demais
instituições republicanas.
Este discurso, na realidade, confunde a posição
constitucional do Poder Judiciário e do STF.
De poderes constituídos, que efetivamente são, portanto,
submetidos aos limites da Constituição e da lei, passariam a verdadeiros
soberanos, sem nenhuma espécie de controle.
Afinal, o soberano é absoluto, o que significa
incontrolável, não sujeito a determinados controles, não necessariamente
totalitário ou autoritário [21].
Esta visão "absolutista" do papel do Poder
Judiciário nas democracias contemporâneas é mais comum do que costumamos
imaginar, especialmente no que diz respeito à atuação das Cortes Constitucionais.
Faz parte de um fenômeno denominado, entre outros, por Pedro
de Vega García, de positivismo jurisprudencial [22].
Os órgãos de controle de constitucionalidade, assim, são
convertidos em taumaturgos, esquecendo-se da função transformadora da
Constituição, deixada de lado por ser "política", não
"jurídica".
O risco existente é o de supremacia do poder dos juízes,
poder não eleito, diga-se de passagem, em detrimento do Executivo e do
Legislativo [23].
Portanto, a questão fundamental (e não respondida pelos
adeptos do "positivismo jurisprudencial") é a da substituição do
Poder Legislativo, eleito pelo povo, pelo governo dos juízes constitucionais.
Em quem o cidadão deve confiar: no representante eleito ou
no juiz constitucional?
Se o legislador não pode fugir à tentação do arbítrio, por
que o juiz poderia? [24]
A supremacia dos tribunais constitucionais sobre os demais
poderes caracteriza-se pelo fato de os tribunais pretenderem ser o "cume
da soberania", da qual disporiam pela sua competência para decidir em
última instância com caráter vinculante.
Desta forma, o tribunal constitucional transforma-se em
substituto do poder constituinte soberano [25].
A consequência disto é salientada por Pablo Lucas Verdú:
"(...) o monopólio do conceito e da prática da
Constituição pelos Tribunais Constitucionais, conduz, às vezes, a que estes não
se limitem a defender e a interpretar, como instância máxima, a Lei
Fundamental, mas a assenhorear-se dela. Expressando em termos alemães: não se
limitam a ser o Hüter da Constituição, mas o Herr da mesma" [26].
A visão "absolutista" do Poder Judiciário não é,
de maneira alguma, adequada ao Estado Constitucional.
Dentro do Estado Constitucional, segundo Olivier Beaud, não pode
haver um soberano.
O soberano, no Estado Constitucional, está acima da
Constituição, pois tem o poder de fazer e desfazer a Constituição, ou seja, é o
titular do poder constituinte. Soberano, acima do Estado Constitucional, só
pode ser o povo [27].
O Poder Judiciário e, especialmente, o Supremo Tribunal
Federal não são, apesar dos adeptos do "positivismo jurisprudencial",
detentores do poder constituinte. Não são soberanos. São poderes constituídos,
portanto, submetidos à Constituição e às leis [28].
Deste modo, não só podem, como devem ser controlados, para
que não abusem de suas funções, ou para que não usurpem funções constitucionais
de outros poderes constituídos ou, ainda, tentem usurpar o próprio poder
constituinte, colocando-se acima da própria Constituição e da soberania popular
que a criou e a mantém.
Feita a crítica à visão "absolutista" do Poder
Judiciário, passemos, brevemente, ao discurso da "separação de
poderes".
A PEC nº 33/2011 seria inconstitucional por violar o artigo
60, §4º, III, que dispõe que não será apreciada emenda constitucional tendente
a abolir a "separação de poderes".
Não discutiremos aqui questões ligadas às chamadas
"cláusulas pétreas" ou ao significado da expressão "tendente a
abolir".
Apenas nos limitaremos a demonstrar que a visão de
"separação de poderes" defendida pelos opositores da PEC nº 33/2011 é
mais ortodoxa que a do próprio Montesquieu.
No célebre capítulo VI do Livro XI do livro De L'Esprit des
Lois (1748), Montesquieu teria afirmado a "separação de poderes"
[29].
Na realidade, Montesquieu jamais afirmou que os poderes são
separados de forma estanque.
Esta interpretação, chamada por Charles Eisenmann de
"interpretação separatista" [30], ignorou a intenção de Montesquieu
que, na tradição do chamado "governo misto" [31], buscava a
instituição de um governo moderado, controlado.
A separação de Montesquieu diz respeito à não confusão, à
não identidade entre os componentes das várias funções estatais, não tem nada a
ver com separação total e absoluta.
Pelo contrário, Montesquieu exige que um poder controle o
outro.
O controle recíproco é essencial em seu sistema, para evitar
o abuso de qualquer um dos poderes sobre os outros.
Os próprios norte-americanos entenderam que a "separação
dos poderes" não exigiria que os poderes legislativo, executivo e
judiciário fossem inteiramente desvinculados uns dos outros.
Na realidade, o essencial era, inclusive, a sua vinculação e
interpenetração, realizadas de maneira que cada um dos poderes obtivesse o
controle constitucional sobre os demais.
A mera declaração escrita dos limites dos vários poderes não
era suficiente [32].
O mecanismo encontrado na Constituição norte-americana foi,
ao invés da separação total e absoluta dos poderes, a introdução do sistema de
freios e contrapesos (checks and balances).
No mesmo sentido, o célebre artigo 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789 [33], não propõe um
modelo ideal para toda e qualquer Constituição, como muitos chegaram a
interpretar.
Pelo contrário, trata-se de uma afirmação de que a França,
naquele momento, estava sem Constituição, pois o poder todo estava concentrado
nas mãos do Rei e, portanto, competia à Assembleia Nacional elaborar uma
Constituição para os franceses em que se garantissem os direitos individuais e
a separação de poderes, novamente, no sentido de não concentração de todas as
funções estatais nas mãos de uma mesma pessoa [34].
O grande perigo nunca foi o controle de todos os poderes uns
pelos outros. Pelo contrário, especialmente em relação ao Poder Judiciário, a
ameaça sempre foi proveniente da sua falta de controle.
Em 1823, Thomas Jefferson já alertava como um Poder Judiciário
sem controle poderia se tornar uma efetiva ameaça à democracia constitucional:
"No estabelecimento de nossa Constituição, os
integrantes dos corpos judiciários eram tidos como os mais inofensivos dos
membros do Estado. A experiência, no entanto, logo demonstrou os caminhos pelos
quais eles se tornaram os mais perigosos: o de que a insuficiência de meios
previstos para a sua remoção deu a eles liberdade e irresponsabilidade em seu
ofício; o de que suas decisões, aparentemente dizendo respeito apenas aos litigantes
individualmente, passam em silêncio e desapercebidas pelo público em geral; o
de que essas decisões acabam se tornando lei por meio dos precedentes,
subvertendo aos poucos as fundações da Constituição e promovendo sua mudança
antes que alguém possa perceber que aquele invisível e inofensivo verme estava
empregado ativamente, consumindo a sua substância" [35].
Podemos concluir, portanto, que um maior
"controle" do Poder Judiciário por parte do Poder Legislativo não
fere a "separação de poderes".
Pelo contrário, o que se opõe a toda tradição
constitucionalista de "separação dos poderes" é, justamente, a falta
de controle do Poder Judiciário.
A reação à ampliação do controle democrático sobre o Poder
Judiciário se torna mais bizarra e virulenta quando associada à repulsa a
qualquer forma de ampliação da participação popular direta nas decisões
políticas essenciais, como pretende a PEC nº 33/2011.
A oposição aos instrumentos de participação direta do povo
nas decisões políticas, com o argumento falacioso da "violação ao
princípio da separação de poderes", em suma, parece dar razão à afirmação
de Victor Nunes Leal, ele próprio ex-Ministro do STF, cassado pela ditadura
militar:
"Aí está, portanto, explicado o verdadeiro sentido
sociológico da divisão de poderes. Era um sistema concebido menos para impedir
as usurpações do executivo do que para obstar as reivindicações das massas
populares (ainda em embrião, mas já carregadas de ameaça)" [36].
Talvez seja a hora de se prestar atenção menos nos integrantes
do Supremo Tribunal Federal que apoiaram e sustentaram a ditadura militar, ou
que a consideram, ainda hoje, um "mal necessário", perpetuando, em
uma decisão vergonhosa, a auto-anistia de 1979 aos torturadores e assassinos da
ditadura (ADPF nº 153/DF), e voltar a atenção para aqueles raríssimos
integrantes da Corte que, como Victor Nunes Leal, Hermes Lima ou Evandro Lins e
Silva, jamais tiveram qualquer dúvida sobre qual deveria ser o papel do Supremo
Tribunal Federal como um órgão inserido dentro da democracia, portanto,
submetido aos limites da Constituição e à livre e soberana vontade do povo.
[1] Gilberto Bercovici é Professor Titular da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é
Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de
Fortaleza.
[2] In:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MS_32033.pdf, p. 12. Acesso
em 25.04.13
[3] In:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD26MAI2011.pdf#page=212, p. 2612. Acesso
em 25.04.2013.
[4] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político. SP:
Martins Fontes, 2003, pp. 307-309.
[5] Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 224.
[6] Chauí, Marilena: Política em Espinosa. SP: Cia. das
Letras, 2003, p. 129.
[7] Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em
Spinoza. RJ: Lumen Juris, 2010, p. 186.
[8] Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em
Spinoza, p. 193.
[9] "O Presidente pode violar imunidades parlamentares,
usurpar funções legislativas, descumprir decisões judiciais; sob inspirações
facciosas, entrar em conflito com outros Poderes ou com os Poderes constituídos
dos Estados (...) Pode arruinar o crédito nacional e comprometer o bom nome do
país pelo acintoso descaso com que desrespeita obrigações internacionais. Pode
alienar bens nacionais, contrair empréstimos e emitir moeda, sem autorização
legal. Pode o Presidente retardar dolosamente a publicação das leis, decretar o
estado de sítio, estando reunido o Congresso, e, sem licença deste, ausentar-se
do País. (...) Pode, enfim, provocar
animosidade entre as Forças Armadas, com o premiar da indisciplina, galardoar a
incompetência, fomentar o nepotismo, pode cometer atos de hostilidade contra
nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, celebrar tratados e
convenções humilhantes para a nação...(...) Este painel terrível pode ser o retrato do país e obra de um
governante. (...) Qual a solução jurídica para o caso esdrúxulo, uma vez que a
competência do Senado, para exercer-se, supõe decreto acusatório da Câmara?
Nenhuma solução legal existe (BROSSARD, Paulo. In: Impeachment, Imprensa
Nacional, Brasília, 1996
[10] V. Chauí, Marilena: Política em Espinosa. SP: Cia. das
Letras, 2003, pp. 37ss.
[11] Chauí, Marilena: Política em Espinosa, p. 127.
[12] Chauí, Marilena: Política em Espinosa, p. 45.
[13] Spinoza, Baruch de: Tratado Político: Cap. 8º, § 6. SP:
Tecnoprint, pp.89/90.
[14] Chauí, Marilena. Ib., p. 294.
[15] ADC nº 1-DF, p. 275. In: Mendes, Gilmar Ferreira:
Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil. SP: Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional, 2000.
[16] Os exemplos mais significativos são Ingeborg Maus na
Alemanha; Javier Perez Royo na Espanha, e Mark Tushnet nos Estados Unidos da
América. Para não mencionar a ausência de controle concentrado a
constitucionalidade na França, Inglaterra e Suécia, até os dias de hoje.
[17]
Grifamos. KANT, Immanuel: Metaphysik der Sitten. Darmstadt: WBG, Bd. 7, 1983,
pp. 431/342.
[18]
Grifamos. BOBBIO, Norberto: Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel
Kant. SP: Mandarim, 2000, p. 227.
[19] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou
Princípios do Direito Político. SP:, Hemus, 1981, p. 96.
[20] SIEYÈS, Emmanuel-Joseph, Qu'est-ce que le Tiers Etat?,
2ª ed, Paris, PUF, 1989, capítulo V.
[21] Sobre esta concepção, vide BEAUD, Olivier, "Le
Souverain", Pouvoirs º 67, 1993, p. 36.
[22] GARCÍA, Pedro de Vega, "El Tránsito del
Positivismo Jurídico al Positivismo Jurisprudencial en la Doctrina
Constitucional", Teoría y Realidad Constitucional nº 1, janeiro/junho de
1998, pp. 85-86.
[23] VERDÚ, Pablo Lucas, La Constitución en la Encrucijada
(Palingenesia Iuris Politici), Madrid, Real Academia de Ciencias Morales y
Políticas, 1994, pp. 65-78 e 107-108.
[24] SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt, Direito Público e
Sociedade Técnica, Coimbra, Atlântida Editorial, 1969, pp. 154-155 e 182-183 e
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, "Grundrechte als Grundsatznormen: Zur
gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik" in Staat, Verfassung,
Demokratie: Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht, 2ª ed,
Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992, pp. 191 e 198-199.
[25] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, "Grundrechte als
Grundsatznormen: Zur gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik" cit., pp.
189-19 e; MAUS, Ingeborg, "Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel
da Atividade Jurisprudencial na 'Sociedade Órfã'", Novos Estudos nº 58,
novembro de 2000, pp. 190-193.
[26] VERDÚ, Pablo Lucas, La Constitución en la Encrucijada
cit., pp. 75-76. Thomas Jefferson, em 1823, já fazia crítica semelhante:
"A Constituição (...) significa que seus poderes coordenados devem ser
limitados um pelo outro. Mas, a opinião que atribui aos juízes o direito de
decidir quais leis são constitucionais e quais não são, não apenas para eles
próprios, em sua esfera de atuação, mas para o Legislativo e para o Executivo
em suas respectivas esferas, poderá tornar o Judiciário um poder
despótico" in Carta de Thomas Jefferson a William Johnson (1823).
[27] BEAUD,
Olivier, "Le Souverain" cit., pp. 36-40.
[28] BEAUD,
Olivier, "Le Souverain" cit., pp. 40-41.
[29] MONTESQUIEU, De L'Esprit des Lois in Oeuvres Complètes,
reimpr., Paris, Éditions du Seuil, 1990, Livro XI, Cap. VI.
[30] EISENMANN, Charles, "La Pensée Constitutionnelle
de Montesquieu" in Cahiers de Philosophie Politique nº 2-3: Montesquieu,
Bruxelas, Éditions Ousia, 1985, pp. 38-50. Vide também TROPER, Michel, La
Séparation des Pouvoirs et l'Histoire Constitutionnelle Française, Paris,
L.G.D.J., 1980, pp. 109-120.
[31] Sobre a tradição do "governo misto" e da
"constituição mista", provenientes de Políbio e recorrentes na
formação do constitucionalismo ocidental, especialmente na tradição inglesa,
vide, por todos, POCOCK, J. G. A., The Machiavellian Moment: Florentine
Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, Princeton, Princeton
University Press, 1975, especialmente capítulos IX e XI, pp. 272-273, 277, 286,
297-300, 304-308, 315-316, 323-328, 364-371, 382 e 395.
[32]
HAMILTON, Alexander; MADISON, James & JAY, John, The Federalist Papers,
London/New York, Penguin Books, 1987, Artigo nº 48.
[33] Artigo 16: "Toda sociedade na qual não está
assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação de poderes, não
tem constituição".
[34] Vide
TROPER, Michel, La Séparation des Pouvoirs et l'Histoire Constitutionnelle
Française cit., pp. 157-160 e RIALS, Stéphane, La Déclaration des Droits de
l'Homme et du Citoyen, Paris, Hachette, 1988, pp. 252-254.
[35]Carta de Thomas Jefferson a A. Coray (1823).
[36] LEAL, Victor Nunes, "A Divisão dos Poderes no
Quadro Político da Burguesia" in Cinco Estudos: A Federação – A Divisão de
Poderes (2 estudos) – Os Partidos Políticos – A Intervenção do Estado, Rio de
Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1955, p. 108.
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