O tema da reforma política volta ao topo da agenda nacional e traz consigo a necessidade de discussão de um dos seus aspectos mais relevantes. Sempre acreditei que o financiamento empresarial de campanhas fere, antes de tudo, um princípio constitucional, o da igualdade (art. 5º), e afronta uma premissa universal dos sistemas democráticos: "um homem, um voto".
Isso porque, se as campanhas dependem cada vez mais de dinheiro, ao se permitir que pessoas jurídicas façam pesadas doações aos candidatos, está-se legitimando o desequilíbrio na disputa por votos e, assim, distorcendo a vontade popular.
Isso já seria o bastante para condenar o modelo. Mas é pior: chancela-se, aí, a influência do poder econômico nas decisões do poder público. Afastam-se, também, os candidatos que não aceitam a dependência do poder econômico, tendo em vista a certeza de que a "fatura" será cobrada depois. Não se há de imaginar que o idealismo ou a amizade desinteressada (salvo alguma rara exceção) seja o móvel dessas doações.
A experiência em um órgão de controle veio apenas reforçar-me a intuição: as consequências deletérias do óbvio conflito entre interesses públicos e privados, que advêm da dependência entre o capital e o mandato, entre os recursos para a eleição e o cargo depois ocupado.
Isso mostra como é falso o argumento do "alto custo para os cofres públicos", usado pelos que se opõem ao financiamento público. Basta pensar em quanto esses mesmos cofres perdem pela corrupção. É certo que as doações de campanhas não são a causa única da corrupção, mas uma das principais.
Tomem-se algumas de suas formas mais comuns: direcionamento de licitações, com elevação dos preços pela ausência de competição, orçamentos com sobrepreço, superfaturamento, medições fraudadas, tudo a propiciar a geração das "gorduras" que, muito provavelmente, vão compensar as doações da campanha anterior ou garantir a próxima. Aliás, expressões como "sobras de campanha" ou "dívidas de campanha", usadas para explicar situações duvidosas, aí estão para confirmá-lo.
Tudo isso sem falar em distorções outras --distintas da corrupção--, como a influência ilegítima nas decisões e nos votos dos eleitos.
Outro argumento dos que defendem o dinheiro das empresas nas eleições, de que o financiamento público reforçaria a maioria do governo, peca pelo equívoco de pressupor que o critério de repartição dos recursos seja necessariamente o tamanho das bancadas.
Do mesmo modo, a suposição de que não haveria como controlar a origem do dinheiro carece de demonstração. Por acaso a Justiça Eleitoral e o Ministério Público têm sido lenientes? Não parece ser a realidade. E, ainda que ninguém imagine um controle infalível, isso não justifica a defesa do custeio empresarial das eleições, do mesmo modo que não se há de defender a legalidade do suborno, da propina ou do contrabando, apenas por não ser possível coibi-los totalmente.
A crise de representatividade, hoje tão discutida, talvez tenha uma de suas raízes nas distorções do sistema político, em que avulta --sem que seja a única --a do financiamento empresarial, associado à duração e aos custos da propaganda.
Não se supõe que, afastado o poder econômico do processo eleitoral, estarão resolvidos todos os problemas. Mas o fato é que o sistema atual é de tal modo indefensável que parece já passada a hora de buscar outras soluções.
JORGE HAGE, 75, é ministro-chefe da Controladoria-Geral da União (CGU
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