sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Na tragédia das chuvas, a culpa não é só da natureza


Redação CartaCapital

À medida que os dias passaram, desde o fatídico 1º de janeiro, ficou mais e mais evidente que as dezenas de mortes e os prejuízos incalculáveis provocados pelas chuvas foram causados apenas parcialmente pelas condições climáticas adversas. Estas, não resta dúvida, têm sido especialmente severas desde o último trimestre de 2009, sob a influência do aquecimento das águas do Pacífico. Em anos passados, o El Niño, como é conhecido o fenômeno que atinge as águas costeiras do Chile e Peru, também causou estragos consideráveis, com enchentes e deslizamentos de terra em várias cidades do território nacional.

Também não resta dúvida de que neste ano a situação foi ainda mais grave. O cenário devastador na pequena São Luís do Paraitinga, cidade paulista de 20 mil habitantes encravada entre montanhas no Vale do Paraíba, os desmoronamentos em Angra dos Reis e Ilha Grande, no litoral fluminense, ou a queda da ponte sobre o rio Jacuí, no interior do Rio Grande do Sul, sugerem que uma parcela considerável da responsabilidade pelas catástrofes ocorridas recai sobre a ação humana, como têm alertado alguns especialistas. Ou sobre a inação, conforme o caso, de prefeituras, estados ou Ministério das Cidades. Em matéria de uso do solo, a regra nacional ainda é a ausência de regulação pública ou o descaso com as leis existentes, mantidas apenas no papel.

O caso de São Luís do Paraitinga, onde se encontra o maior conjunto de edificações do período colonial do estado de São Paulo e ao menos 300 casas foram danificadas, ilustra bem o risco a que está exposta uma parcela considerável da população brasileira, cerca de 40 milhões de cidadãos residentes em áreas de risco, segundo estimativa da ONG Amigos da Terra.

“As chuvas arrasaram São Luís, desmontaram completamente a cidade. Prefeitura, postos de saúde, escolas, cartórios, parte do Fórum, foi tudo por água abaixo, além de centenas de casas”, disse a CartaCapital Luiz Antonio Gomes, pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), ligado à USP, e chefe da equipe do IPT que chegou à cidade no domingo 3, dois dias após a tragédia, acionada pela Defesa Civil estadual. “A situação lá poderá piorar porque as condições dos taludes (barrancos, na linguagem técnica) são muito precárias. Além da previsão de novas chuvas, as casas localizadas nas margens do Paraitinga, que chegou a subir dez metros, poderão ser afetadas pela pressão decorrente da vazante da água”, avalia o pesquisador.

As chuvas torrenciais por mais de doze horas no Vale do Paraíba, litoral norte de São Paulo e região de Angra e Ilha Grande, na virada do ano, são apontadas como as primeiras razões do desastre, mas para este contribuíram as construções precárias e irregulares das encostas e várzeas, características da ocupação territorial brasileira.

O técnico do IPT chama a atenção para o trabalho a ser feito daqui para a frente. Nas regiões montanhosas do País, alerta Gomes, a ampla maioria das cidades não possui um estudo geotécnico para indicar as regiões impróprias e propor obras de contenção. Esses estudos costumam ser deixados de lado até que o pior aconteça. É o caso de Piquete, também no Vale do Paraíba, que viveu a sua tragédia no início de 2009. Em dezembro passado, a prefeitura recebeu do próprio IPT a informação de que cerca de mil edificações da cidade (de um universo de 5 mil) encontram-se em situação de risco.

Em Ilha Grande e Angra, há indícios de que os interesses privados – os “urbanistas” de fato das cidades brasileiras, segundo especialistas – prevaleceram de modo a abrandar as exigências ambientais para a construção civil. Foi nessa direção um decreto do governador do Rio, Sérgio Cabral, assinado em julho do ano passado, que permitiu a construção de casas e hotéis em áreas até então vetadas pela legislação, em uma área de proteção ambiental de 80 quilômetros do litoral e 90 ilhas próximas à Angra. O histórico de ocupações irregulares e em condições inapropriadas no litoral brasileiro não é, porém, de responsabilidade da administração atual, muito menos restringe-se ao litoral fluminense, onde os licenciamentos ambientais não são levados a sério. É o caso da Pousada Sankay, em Ilha Grande, construída na encosta de um morro, e que veio abaixo nas primeiras horas do ano por conta de um deslizamento de terra. A pousada, por sinal, é anterior à alteração legal.

No caso do Rio Grande do Sul, onde treze rodovias tiveram de ser interditadas por causa das chuvas, faltou ao poder público verificar as estruturas da ponte sobre o rio Jacuí, de 314 metros e com mais de 40 anos de vida útil no momento da queda, conforme alegação de engenheiros civis nos dias seguintes ao acidente.

No litoral paulista, os estragos materiais e o número de vítimas foram bem menores. Ainda assim não faltaram evidências da precariedade das estradas e serviços públicos que dão acesso ao litoral norte do estado. Quem passou o réveillon em Ubatuba ou Paraty enfrentou até dezoito horas de congestionamento para chegar a São Paulo – e nada menos que doze horas para alcançar a vizinha Caraguatatuba, um trajeto de 54 quilômetros. A situação ali foi agravada pela interdição de rodovias e a falta de informações. No posto da Polícia Rodoviária, na praia do Félix, em Ubatuba, os policiais preferiram manter os telefones fora do gancho para não ser incomodados. “Não sabemos como está a situação na direção de Caraguatatuba, cuidamos apenas do trecho entre Ubatuba e Paraty. Parece que o jeito é rodar mais 400 quilômetros e ir por Angra”, afirmava, na manhã da segunda-feira 4, um desinteressado oficial responsável pelo atendimento.

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