A emenda e o Supremo
Virgílio Afonso da Silva
Na semana passada, todos os
holofotes estavam apontados para a Câmara dos Deputados, que discutia uma
proposta de emenda constitucional (PEC) que, segundo muitos, é flagrantemente
inconstitucional, por ferir a separação de poderes. Contudo, a decisão mais inquietante,
em vários sentidos, inclusive em relação à própria separação de poderes, estava
sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia seguinte, nas
primeiras páginas dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder Legislativo.
A PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da
Câmara é polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é questionável, não há
dúvidas. Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de poderes e do direito
comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas
regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito
mais chocante.
O ponto mais polêmico da PEC
é a exigência de que uma decisão do STF que declare a inconstitucionalidade de
uma emenda constitucional seja analisada pelo Congresso Nacional, o qual, se a
ela se opuser, deverá enviar o caso a consulta popular.
____________________________________________________________
Ministro decidiu que o
Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele não concorda
com o teor
_____________________________________________________________
É quase um consenso entre
juristas que um tribunal constitucional ou uma suprema corte, como é o caso do
STF, deve ter a última palavra na interpretação da constituição e na análise da
compatibilidade das leis ordinárias com a constituição. Mas muito menos
consensual é a extensão desse raciocínio para o caso das emendas
constitucionais. Nos EUA, por exemplo, emendas à constituição não são
controladas pelo Judiciário. A ideia é simples: se a própria constituição é
alterada, não cabe à Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o
texto antigo. Isso quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo
no caso do controle de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o
"quase consenso" mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo
Parlamento não apenas pode anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como
também imunizar uma lei por determinado período de tempo contra novas decisões
do Judiciário.
Não há dúvidas de que o caso
brasileiro é diferente. A constituição brasileira possui normas que não podem
ser alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as chamadas cláusulas
pétreas. Mas não me parece que seja necessário entrar nesse complexo debate de
direito constitucional, já que o intuito não é defender a decisão da CCJ, cuja
conveniência e oportunidade são discutíveis.
Neste momento em que o
Legislativo passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a hora de
tentar recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero defender a
constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até aqui foi apenas
apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é menos singular do que
muitos pretenderam fazer crer.
Já a decisão do ministro
Gilmar Mendes, tomada na mesma data e que mereceu muito menos atenção da
imprensa, é algo que parece não ter paralelo na história do STF e na
experiência internacional. Ao bloquear o debate sobre as novas regras partidárias,
Gilmar Mendes simplesmente decidiu que o Senado não poderia deliberar sobre um
projeto de lei porque ele, Gilmar Mendes, não concorda com o teor do projeto.
Em termos muito simples, foi isso o que aconteceu. Embora em sua decisão ele
procure mostrar que o STF tem o dever de zelar pelo "devido processo
legislativo", sua decisão não tem nada a ver com essa questão. Os
precedentes do STF e as obras de autores brasileiros e estrangeiros que o
ministro cita não têm relação com o que ele de fato decidiu. Sua decisão foi,
na verdade, sobre a questão de fundo, não sobre o procedimento. Gilmar Mendes
não conseguiu apontar absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum
desrespeito ao processo legislativo por parte do Senado. O máximo que ele
conseguiu foi afirmar que o processo teria sido muito rápido e aparentemente
casuístico. Mas, desde que respeitadas as regras do processo legislativo, o
quão rápido um projeto é analisado é uma questão política, não jurídica. Não
cabe ao STF ditar o ritmo do processo legislativo.
Sua decisão apoia-se em uma
única e singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento "se o projeto
for aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c". Ora, não
existe no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle prévio de constitucionalidade
feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares onde há esse controle prévio - como na
França - ele jamais ocorre dessa forma. Na França, o Conselho Constitucional
pode analisar a constitucionalidade de uma lei antes de ela entrar em vigor, mas
nunca impedir o próprio debate. Uma decisão nesse sentido, de impedir o próprio
debate, é simplesmente autoritária e sem paralelos na história do STF e de
tribunais semelhantes em países democráticos.
Assim, ao contrário do que
se noticiou na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência "em escala
incomparavelmente menor" do que a decisão da CCJ. É justamente o oposto.
Além das razões que já mencionei antes, a decisão do STF é mais alarmante
também porque produz efeitos concretos e imediatos, ao contrário da decisão da
CCJ, que é apenas um passo inicial de um longo processo de debates que pode,
eventualmente, não terminar em nada. E também porque, se não for revista, abre
caminho para que o STF possa bloquear qualquer debate no Legislativo sempre que
não gostar do que está sendo discutido. E a comprovação de que essa não é uma
mera suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois dias depois, em outra
decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu da Câmara dos Deputados
explicações acerca do que estava sendo discutido na CCJ, como se a Câmara
devesse alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo irônico que, na mesma
semana em que acusa a Câmara de desrespeitar a separação de poderes, o STF
tenha tomado duas decisões que afrontaram esse princípio de forma tão
inequívoca. A declaração de Carlos Velloso, um ex-ministro do STF que prima
pela cautela e cordialidade, não poderia ter sido mais ilustrativa da gravidade
da decisão do ministro Gilmar Mendes: "No meu tempo de Supremo, eu nunca
vi nada igual"!
Virgílio Afonso da Silva é
professor titular de direito constitucional na faculdade de Direito da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário