Numa entrevista
surpreendente, que será publicada em livro no dia 13 de maio, o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva fala sobre vários temas, incluindo sua relação com os
meios de comunicação. "Eu não tenho raiva deles e não guardo mágoas. O que
eu guardo é o seguinte: eles nunca ganharam tanto dinheiro na vida como
ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão, que estavam quase todas
quebradas; os jornais, quase todos quebrados quando assumi o governo",
afirma. Lula diz ainda que, em 2005, no auge da crise do chamado mensalão,
tomou uma decisão: a de ignorar os jornais e as revistas
247 - Luiz Inácio Lula da
Silva é hoje o inimigo número 1 de grandes grupos de mídia nacionais,
especialmente Abril e Globo, mas há, nisso, um paradoxo. Foi no governo do
presidente operário que essas empresas conseguiram sair do buraco e resolver
suas dívidas cambiais – heranças malditas do governo FHC.
Lula, no entanto, nunca
recebeu sinais de gratidão por ter, inclusive, se engajado pessoalmente no
resgate dos grupos de mídia. Essa relação tensa, entre o político e os meios de
comunicação, é um dos temas da longa entrevista que ele concedeu ao sociólogo
Emir Sader e que ser á lançada no livro "Governos Pós-Liberais no Brasil:
Lula e Dilma", no dia 13 de maio.
Confira, abaixo, alguns dos
principais trechos da entrevista de Lula:
Qual o balanço que o senhor
faz dos anos de governo do PT e aliados?
Esses anos, se não foram os
melhores, fazem parte do melhor período que este País viveu em muitos e muitos
anos. Se formos analisar as carências que ainda existem, as necessidades vitais
de um povo na maioria das vezes esquecido pelos governantes, vamos perceber que
ainda falta muito a fazer para garantir a esse povo a total conquista da cidadania.
Mas, se analisarmos o que foi feito, vamos perceber que outros países não
conseguiram, em trinta anos, fazer o que nos conseguimos fazer em dez anos.
Quebramos tabus e conceitos preestabelecidos por alguns economistas, por alguns
sociólogos, por alguns historiadores. Algumas verdades foram por água abaixo.
Primeiro, provamos que era plenamente possível crescer distribuindo renda, que
não era preciso esperar crescer para distribuir. Segundo, provamos que era
possível aumentar salário sem inflação. Nos últimos 10 anos, os trabalhadores
organizados tiveram aumento real: [...] o salário mínimo aumentou quase 74% e a
inflação esteve controlada. Terceiro, durante essa década aumentamos o nosso
comercio exterior e o nosso mercado interno sem que isso resultasse em
conflito. Diziam antes que não era possível crescer concomitantemente mercado
externo e mercado interno. Esses foram alguns tabus que nós quebramos. E, ao
mesmo tempo, fizemos uma coisa que eu considero extremamente importante:
provamos que pouco dinheiro na mão de muitos é distribuição de renda e que
muito dinheiro na mão de poucos é concentração de renda.
(...)
Quando começou o governo, o
senhor devia ter uma ideia do que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial,
o que se realizou e o que não se realizou, e por quê?
Tínhamos um programa e
parecia que ele não estava andando. Eu lembro que o ministro Luiz Furlan, cada
vez que tinha audiência, dizia: "Já estamos no governo há tantos dias,
faltam só tantos dias para acabar e nós precisamos definir o que nós queremos
que tenha acontecido no final do mandato. Qual é a fotografia que nós
queremos". E eu falava: "Furlan, a fotografia está sendo
tirada". Não é possível ficar com pressa de obter resultados. Nós temos
que provar, no final de um mandato, se nós fomos capazes de fazer aquilo que
nos propusemos a fazer. Se a gente for trabalhar em função das manchetes dos
jornais, a gente parece que faz tudo e termina não fazendo nada.
Então é o seguinte: eu
plantei um pé de jabuticaba. Se esse pé nascer saudável, vai ter sempre alguém
dizendo: "Mas, Lula, não está dando jabuticaba, está demorando". Se
for cortar o pé e plantar outra coisa, eu nunca vou ter jabuticaba. Então, eu
tenho que acreditar que, se eu adubar corretamente, aquele pé vai dar jabuticaba
de qualidade. E eu citava esses exemplos no governo... Soja tem que esperar 120
dias, o feijão tem que esperar 90 dias. Não adianta ficar repisando, "faz
uma semana que eu plantei e não nasceu". Tem que ter paciência. Eu acho
que eu fui o presidente que mais pronunciei a palavra "paciência",
"paciência"... Senão você fica louco.
Tem gente na política que
levanta de manhã, lê o jornal e quer dar resposta ao jornal. E daí não faz
outra coisa. Eu não fui eleito para ficar o tempo todo dando resposta a jornal.
Eu fui eleito para governar um país. E isso me deu tranquilidade suficiente
para ver que o programa de governo ia ser cumprido.
(...)
Quando o senhor perdeu a
paciência?
Obviamente que nós tivemos
problemas no começo. Você acha que é simples um metalúrgico sentar naquela
cadeira na qual sentaram tantas outras personalidades, que via pela televisão,
que achava que era mais importante do que eu... E o mesmo em relação a dormir
no quarto em que dormiu tanta gente importante ou que, pelo menos a voz da
opinião publica, são importantes. E eu ficava pensando: "Será que é
verdade que eu estou aqui?".
No começo tinha muita
ansiedade. "Sera que nós vamos dar conta de fazer isso? Será que vai ser
possível?", eu me perguntava. Eu acho que nós fizemos. Com erro e com
muita tensão, mas fizemos.
(...)
Tivemos tropeços, é lógico.
Muitos tropeços. O ano de 2005 foi muito complicado. Quando saiu a denúncia,
foi uma situação muito delicada. Se não tivéssemos cuidado, não iríamos
discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente
discutisse. Um dia, eu cheguei em casa e disse: "Marisa, a partir de hoje,
se a gente quiser governar este país, a gente não vai ver televisão, a gente
não vai ver revista, a gente não vai ler jornal". Eu passei a ter meia
hora de conversa por dia com a assessoria de imprensa, para ver qual era o
noticiário [...], mas eu não aceitava levantar de manhã, ligar a televisão e já
ficar contaminado. Então eu acho que isso foi um dado muito importante.
Eu tinha uma equipe e
criamos uma sala de situação, da qual participavam Dilma, Ciro [Gomes],
Gilberto [Carvalho] e Márcio [Thomaz Bastos]. E era muito engraçado: eu chegava
ao Palácio e eles estavam todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava:
"Vocês estão vendo? Vocês leem jornal... Vocês estão nervosos por
quê?".
(...)
Vocês nasceram radicais...
O PT era muito rígido, e foi
essa rigidez que lhe permitiu chegar aonde chegou. Só que, quando um partido
cresce muito, entra gente de todas as espécies. Ou seja, quando você define que
vai criar um partido democrático e de massa, pode entrar no partido um cordeiro
e pode entrar uma onça, mas o partido chega ao poder.
Então, a nossa chegada ao
poder foi vista por eles não como uma alternância de poder benéfica à
democracia, não como uma coisa normal: houve uma disputa, ganhou quem ganhou,
leva quem ganhou, governa quem ganhou e fim de papo. Não é isso? Eles não viram
assim. Quer dizer, eu era um indesejado que cheguei lá. Sabe aquele cara que é
convidado para uma festa, e o anfitrião nem tinha convidado direito. Fala
assim: "Se você quiser, passa lá". E você passa e o cara fala:
"Esse cara acreditou?". Então, nós passamos na festa, e o que é mais
grave, acertamos.
E depois, tentaram usar o
episódio do mensalão para acabar com o PT e, obviamente, acabar com o meu
governo. Na época, tinha gente que dizia: "O PT morreu, o PT acabou".
Passaram-se seis anos e quem acabou foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O
PSDB está tentando ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não
criou lideranças, não promoveu lideranças. Isso deve aumentar a bronca que eles
têm da gente - que, aliás, não é recíproca.
O senhor não tem raiva da
oposição?
Eu não tenho raiva deles e
não guardo mágoas. O que eu guardo é o seguinte: eles nunca ganharam tanto
dinheiro na vida como ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão,
que estavam quase todas quebradas; os jornais, quase todos quebrados quando
assumi o governo. As empresas e os bancos também nunca ganharam tanto, mas os
trabalhadores também ganharam. Agora, obviamente que eu tenho clareza que o
trabalhador só pode ganhar se a empresa for bem. Eu não conheço, na história da
humanidade, um momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores
conseguem conquistar alguma coisa a não ser o desemprego.
(...)
O Brasil mudou nesses dez
anos. E o senhor, também mudou?
Uma das coisas boas da
velhice é você tirar proveito do que a vida te ensina, em vez de ficar
lamentando que está velho. A vida me ensinou muito. Criar um partido nas
condições que nos criamos foi muito difícil. Agora que o partido é grande, tudo
fica fácil, mas eu viajava esse país para fazer assembleia com três pessoas,
com quatro pessoas, com cinco pessoas. Saia daqui de São Paulo para o Acre pra
fazer reunião com dez pessoas, para convencer o Chico Mendes a entrar no PT,
para convencer o João Maia - aquele que recebeu dinheiro para votar na eleição
do Fernando Henrique Cardoso e era advogado da Contag - para entrar no PT. Era
muito difícil fazer caravana, viajar ao Nordeste, pegar ônibus, ficar uma
semana andando, fazendo comício ao meio-dia, com um sol desgraçado, explicando
o que era o PT para que as pessoas quisessem se filiar.
Por quê?
A eleição está ficando uma
coisa muito complicada pro Brasil. No mundo inteiro. No Brasil, se o PT não
reagir a isso, poucos partidos estarão dispostos a reagir. Então o PT precisa
reagir e tentar colocar em discussão a reforma política. Eu tentei, quando
presidente, falar de uma Constituinte exclusiva, que é o caminho: eleger
pessoas que só vão fazer a reforma política, que vão lá [para o Congresso],
mudam o jogo e depois vão embora. E daí se convocam eleições para o Congresso.
O que não dá é pra continuar assim.
Às vezes tenho a impressão
que partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item
extremamente importante para a sociedade. A sociedade tem que acreditar no
partido, tem que participar dos partidos.
O PT não mudou
necessariamente para melhor?
O PT mudou porque aprendeu a
convivência democrática da diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu
os mesmos desvios que criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros
partidos políticos. E esse é o jogo eleitoral que está colocado: se o político
não tiver dinheiro, não pode ser candidato, não tem como se eleger. Se não
tiver dinheiro para pagar a televisão, ele não faz uma campanha.
Enquanto você é pequeno,
ninguém questiona isso. Você começa a ser questionado quando vira alternativa
de poder. Então, o PT precisa saber disso. O PT, quanto mais forte ele for,
mais sério ele tem que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra ninguém,
mas eu acho que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente
acreditava e que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de
legado que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. E provar
que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político,
pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não precisa
estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT precisa voltar
urgentemente a ter isso como uma tarefa dele e como exercício pratico da
democracia. Não tem de voltar a ser sectário como era no começo.
Eu lembro que companheiros
meus perderam seu emprego numa metalúrgica, montaram um bar, mas quiseram
entrar no sindicato e não puderam. "Você não pode entrar porque é patrão",
diziam. O coitado do cara tinha só um bar! A coitada da minha sogra, a mãe do
marido da Marisa, a mãe do primeiro marido da Marisa (eu sou o único cara que
tive três sogras na vida e uma que não era minha sogra; era sogra da minha
mulher, por conta do ex-marido dela, que eu adotei como sogra), a coitada tinha
um fusquinha 1966 que era herança do marido. E ela ganhava acho que 600 -
naquele tempo era como se fosse um salário mínimo de hoje - de aposentadoria,
mas gostava de andar bem-vestida. Ela chegava a reunião do PT e o pessoal
falava: "Já veio a burguesa do Lula".
Tinha um candidato a
vereador que queria dinheiro para a campanha e eu falei: "Olha, eu não vou
pedir dinheiro para a campanha. Se você quiser, eu te apresento algumas
pessoas". Dai ele disse: "Não, mas eu não quero conversar com
empresário". Falei: "Então você quer que um favelado de dinheiro para
a tua campanha?". Eu já fiz campanha de cofrinho. Eu já fiz campanha de
macacão em palanque. Na campanha de 1982, a gente ia ao palanque, antes que eu
falasse, fazia propaganda das camisas, dosbótons, de tudo que a gente vendia. E
a gente vendia na hora e arrecadava o dinheiro para pagar as despesas daquele
comício.
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