quinta-feira, 6 de junho de 2013

A imprensa atravessando o samba


Wanderley Guilherme dos Santos


Postular dogmaticamente que o feito poderia ser feito melhor é a forma mais leviana de um jornalão confessar que, apesar do que foi ou venha a ser feito, continuará contra


Em 1963, a Acadêmicos do Salgueiro adentrou a avenida Presidente Vargas para ganhar o carnaval e revolucionar o desfile das escolas. Seu samba-enredo narrava a história de uma escrava e, para espanto de todos, começava assim: "Apesar de não ter grande beleza". Como? Onde já se viu um samba começar com "apesar"? Bem, tratava-se da famosa Chica da Silva que, mesmo sem dispor de excelência física, "encantou a mais alta nobreza". O samba? Maravilhoso.

Os autores da ousadia, Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira, transgrediram criativamente a rotina das letras e utilizaram com perfeição um recurso estilístico. Lamentaram o que seria de lamentar – a ausência de perfeição estética da mulher – para melhor exaltar um grande feito: a conquista do coração do contratador João Francisco de Oliveira, "que a tomou para ser a sua companheira".

Pois 50 depois, o jornal O Globo estampou em sua primeira página de domingo, 2/6/13, matéria sobre trabalho infantil que começava assim: "Apesar dos avanços no combate ao trabalho infantil desde os anos 90..." ao que se seguia informação sobre o possível número de crianças e adolescentes ainda trabalhando em atividades perigosas, e terminando com o registro de que "Para os especialistas, o país não deve cumprir a meta de erradicar esse tipo de trabalho até 2015". A Organização Internacional do Trabalho acabava de publicar relatório sobre eliminação do trabalho infantil apontando que o programa bolsa família foi responsável por parte da significativa redução de 13,4% no contingente de trabalho infantil no Brasil, entre 2000 e 2010. Especificamente, segundo o IBGE, o número de crianças e adolescentes trabalhadores decresceu de 5,3 para 4,3 milhões, entre 2004 e 2009. Um milhão a menos em cinco anos. O jornal O Globo, ao contrário dos criativos compositores do Salgueiro, transformou uma comemoração em velório, apresentou pêsames aos resgatados de um desastre e exaltou um evento que, segundo especialistas, não acontecerá daqui a dois anos. Tudo em primeira página garrafal. Que jornalismo é esse?

Mais do que engajado partidariamente, trata-se de um jornalismo de péssima qualidade profissional, não bastasse o estilo chulamente cafajeste de seus colunistas. Os redatores são incompetentes ou corrompidos. Inúteis até para formar a opinião dos leitores de oposição ao atual governo, pois a que serve a disseminação da ideia de que, não importando o esforço da sociedade brasileira, ela não será capaz de superar seus problemas? Instilando desalento e baixa auto-estima no segmento que o lê, o jornal busca a erosão das expectativas positivas sobre o futuro de bem sucedido projeto de transformação econômica e social, em curso desde 2003. Derrotismo de derrotados faz mal a seus seguidores.

E a confusa manipulação estatística na apresentação dos resultados da pesquisa do IBGE sobre desempenho industrial no primeiro trimestre de 2013, divulgados terça-feira, dia 4/6, reitera o padrão negativista do jornalão carioca, que leva seus profissionais a atingirem o orgasmo ao anunciar alguma catástrofe, mesmo quando o anunciado não o é. Em relação a abril de 2012, a indústria cresceu 8,4%, com indicadores positivos em 23 das 27 atividades, 58 dos 76 subsetores e 63,4% dos produtos pesquisados. Obscurecendo o disseminado impulso positivo da indústria, em texto ininteligível, o jornal ressaltou o hiato que resta recuperar em relação aos níveis de 2011 (O Globo, 5/6/13, p.19). Humor de hiena.

Já em início de campanha eleitoral, o momento é oportuno para balanços críticos do governo e de suas políticas – e aqui faremos alguns. Faltam jornais capazes de identificar, divulgar e analisar os problemas reais, pois contam com recursos materiais para percorrer estados e municípios, registrando negligências e omissões. Postular dogmaticamente que o feito poderia ser feito melhor é a forma mais leviana de um jornalão confessar que, apesar do que foi ou venha a ser feito, continuará contra, atravessando, além do samba, a caminhada.




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