PML: terceirização é retrocesso civilizatório
Marcada para hoje, na Câmara de Deputados, a votação do
projeto de lei 4330, que permite a terceirização sem limites dos
contratos de trabalho, representa um encontro dos brasileiros com sua
história. Ao contrário de outros momentos da evolução de um país, porém,
desta vez o encontro representa uma tentativa do obrigar o Brasil e os
brasileiros a andar para trás.
Na prática a eventual aprovação do 4330 é muito mais do que uma
tentativa de abolir uma legislação que assegura um padrão mínimo de
direitos a quem, biblicamente, paga o próprio sustento com o suor do
rosto. Considerando a importância essencial do trabalho na vida das
pessoas e na segurança das famílias, o projeto representa um retrocesso
civilizatório. Nem a ditadura militar de 1964, articulada e promovida
pelos adversários históricos da Consolidação das Leis do Trabalho, e que
assegurava suas vontades com fuzis e canhões, ousou promover um ataque
dessa natureza. Como novidade legal, o regime militar a aboliu a
estabilidade no emprego, que impedia demissões de quem completava dez
anos na empresa. Mas a ditadura criou o FGTS, que permitiu a cada
assalariado fazer suas economias e, em caso de demissão, sacar um
dinheiro para enfrentar uma maré previsível de dificuldades e até pagar a
casa própria. Meio século depois, até a sobrevivência do FGTS está em
risco, num jogo de esconde-esconde que envolve as responsabilidades das
empresas que irão responder pela contratação dos trabalhadores.
Em 1988, quando o país formulou a Constituição em vigor, o debate
envolvia a ampliação de direitos. Ocorreram melhorias parciais mas o
processo de criação de outras melhorias foi bloqueado por uma aliança
conservadora que se impôs na ultima fase de votação. Agora, quer-se
abolir conquistas que contribuíram, decisivamente, para que o país se
tornasse uma nação de renda média, com serviços públicos que deixam
muito a desejar mas apresentam vantagens reconhecidas em comparação com
economias semelhantes. As leis trabalhistas brasileiras tem um elemento
insuportável para uma parcela da elite brasileira porque suas leis e
benefícios permitem uma espécie de distribuição de renda permanente e
institucionalizada, a margem da luta selvagem dos mercados.
Como bem demonstrou o professor Wanderley Guilherme dos Santos, o
combate a CLT é a única questão relevante que unificou nossa classe
dominante nos últimos 70 anos.
Em 2015, não há exagero em dizer que o principal argumento a favor da
terceirização retoma a retórica que permitiu aos escravocratas do
século XIX fazer do Brasil o penúltimo país do continente a abolir o
cativeiro. Pode ser uma tese deselegante. A lembrança de que fomos um
país que por mais de três séculos sobreviveu com a exploração de negros
acorrentados nunca será agradável -- mas é indispensável para se
entender a cultura do trabalho que permanece no país, e que estará em
jogo na votação da 4330.
Dizia-se, nas vésperas do 13 de maio de 1888, que o fim da escravidão
iria gerar custos imensos e traumas de diversa natureza a economia,
trazendo gastos impagáveis para quem seria obrigado a honrar essa
novidade imensa e subversiva que era o salário. O máximo que se admitia,
até então, eram os escravos de ganho, uma espécie de terceirizado do
século XIX brasileiro. No contexto escravocrata, era um pequeno avanço,
vamos combinar. Com cestas e sacos no ombro, eles saíam pelas ruas das
cidades para vender produtos do trabalho dos escravos de casa e da
fazenda. Como estímulo, tinham direito a embolsar uma pequena parcela
daquilo que entregavam na Casa Grande. Numa visão miserável sobre a
evolução das sociedades, não se enxergava o progresso permitido apenas a
sociedades de homens livres -- seja na economia, na política, na
cultura.
O que se diz, agora, é que os custos do emprego formal se tornaram
incompatíveis com os investimentos e o crescimento. Sem muitos retoques,
o que se quer é o retorno do escravo de ganho. Vamos receber por cocada
vendida, por roupa costurada?
Na década de 1990, quando a elite brasileira importou as propostas da
contrarevolução conservadora de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, os
célebres analistas de recursos humanos diziam que o trabalho de vendedor
ambulante, desses que vende guarda-chuva numa barraquinha, podia ser
mais conveniente e promissor do que de um operário registrado na
industria de automóveis, com férias e 13o. Isso era dito em palestras,
reproduzido em jornais e revistas. Era uma forma de sustentar a tese que
empregos ruins, mal remunerados, podiam beneficiar um número maior de
pessoas, enquanto empregos bons, com benefícios pouco mais do que
elementares, estimulavam a preguiça e o comodismo.
A dificuldade, nessa teoria, é que ela é desmentida em todos seus aspectos por fatos ao alcance de todos. Fica difícil sustentar que as leis trabalhistas prejudicam a maioria dos brasileiros quando se verifica que, entre 2003 e 2014, o número de empregos formais passou de 29,5 milhões para 47,5 milhões, conforme dados do RAIS. No mesmo período o desemprego caiu de 12,3% para 5,3% em 2013, o patamar mais baixo já registrado, diz o IBGE.
O aspecto escandaloso do 4330 encontra-se aí. O país sabe, por
experiência própria, que não representa nenhum benefício real para a
maioria dos brasileiros. A década de 1990, das privatizações e da
desregulamentação, também foi o apogeu dessa forma selvagem de
terceirização que é a informalidade. A taxa de desemprego aberto saltou
de 8,4% em 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso, para
mais de 12%, um crescimento superior 50%. Embora tenha anunciado o fim
da Era Vargas no discurso de posse, FHC enfrentou uma resistência que
não permitiu um ataque frontal a CLT, obrigando a um ataque pelas
bordas. A economia transformou-se numa máquina de destruição de empregos
formais: foram menos 129 339 em 1995, menos 582 000 em 1998, 1menos 98
000 em 1999, informa o Caged. A participação dos salários no PIB caiu
três pontos do PIB.
O projeto 4330 não será debatido e quem sabe aprovado por nenhuma
causa nobre, nenhuma razão benéfica. Não passa de uma utopia negativa e
retardatária, que tem sido critica e abandonada, sistematicamente, pelos
países onde a informalidade se tornou a regra. Na conjuntura
brasileira, é acima de tudo uma oportunidade econômica, um negócio de
ocasião.
Depois de arrematar, na campanha de 2014, a formação do mais
conservador Congresso desde a democratização do país, patrocinando
candidaturas de acordo com seu feitio e interesse, as grandes empresas
instaladas no país estão cobrando a conta. Este ambiente de liquidação
explica o esforço para colocar em votação uma proposta vergonhosa.
Do ponto de vista político, nada tão atual para demonstrar a urgência
de uma reforma política. Do ponto de vista social, poucas vezes os
interesses de pobres e ricos, de trabalhadores e empresários, ficaram
tão evidentes. Sem o imenso caixa financeiro do setor privado,
autorizado a alugar a democracia a seu prazer e gosto -- e corromper
sempre que possível -- a 4330 nunca teria sido mais do que um dos muitos
projetos folclóricos que circulam pelo Congresso e ninguém tem coragem
de colocar em votação pela certeza do ridículo.
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