Ao receber, na primeira semana de dezembro, as delegações de trabalhadores que levaram a Brasília propostas referentes à proteção do emprego, ante a ameaça de desaceleração das atividades econômicas, autoridades do governo reiteraram o que têm afirmado todo dia, desde a eclosão da crise nos EUA: a prioridade do governo Lula é manter os investimentos no PAC, os programas sociais e o emprego.
Quem por preconceito, má fé ou ignorância tem lançado sobre o governo a pecha da incapacidade de gestão ou de morosidade na tomada de decisão, deve ter-se sentido desconfortável, senão atônito, ao verificar quão rápidas e certeiras foram as respostas com que a equipe ministerial reagiu aos primeiros sinais de perturbação na fluidez do crédito e ante a ameaça de desaceleração das atividades.
Depois de adotar medidas de emergência, dirigidas ao setor bancário, com o objetivo de assegurar a manutenção dos fluxos de crédito, tanto junto ao setor produtivo quanto junto aos consumidores, o governo cuidou de retemperar a confiança dos investidores, ao assegurar que não vai cortar investimentos públicos, ao contrário, num reconhecimento explícito do papel estratégico que atribui à demanda agregada na expansão do produto e do emprego.
São várias as demonstrações oficiais nessa direção, como a decisão de estender o prazo de recolhimento dos impostos, como forma de aliviar as empresas da escassez de capital de giro, as medidas de suporte à indústria automobilística, à construção civil e à agricultura, além das reiteradas declarações do presidente Lula de que “o Brasil vai reagir à crise mantendo as obras e incentivando o setor produtivo a continuar produzindo”.
Quanto ao emprego, o Ministério do Trabalho, em resposta à sugestão dos trabalhadores, estuda, entre outras medidas, a ampliação do número de parcelas do seguro-desemprego. Em 2006, o governo já havia atendido a solicitação semelhante, em socorro aos desempregados da indústria de calçados, de móveis e de tratores. Ainda com o objetivo de manter o nível de consumo, e dessa forma assegurar o emprego, o governo cogita de reduzir, temporariamente, as alíquotas do IR, enquanto os partidos sensíveis à causa trabalhista discutem no Congresso Nacional a redução da jornada de trabalho para 40 horas, como medida de estímulo à expansão do emprego. O governo se propõe ainda utilizar a manutenção do emprego como exigência de contrapartida às empresas que receberem socorro de bancos públicos ou que forem beneficiadas por desoneração de impostos.
Não se pode inferir, a partir daí, que o mercado de trabalho brasileiro não vá ser atingido pela recessão que varre o mundo. É certo, porém, como afirmou a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, na quarta-feira, 4 de dezembro, que o governo vai “utilizar todos os instrumentos possíveis para evitar que essa inflexão seja ainda maior”. Dilma lembrou também que “o ponto de convergência entre a lógica das empresas, a do governo e a do cidadão é o emprego”. No mesmo dia, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, afirmava que a manutenção do nível de emprego no próximo ano é uma das preocupações centrais do Palácio do Planalto. Segundo Bernardo, a equipe econômica monitora todos os setores empresariais, para verificar o que precisa ser feito para conter a queda na produção e, por conseqüência, impactos negativos sobre o emprego.
São sinais mais do que suficientes para se reconhecer que os tempos são outros, bem outros. Aos recalcitrantes remanescentes, que ainda insistem em ver na política econômica do governo Lula mera continuidade da do governo FHC, recomenda-se atentar para isso.
Uma breve evocação do passado recente poderá espanar a memória dessa gente e lembrar-lhe que, em matéria de resposta a crises, outra coisa não fez o governo FHC senão se omitir, ao infirmar a capacidade do Estado de intervir na economia mediante a utilização das políticas monetária, cambial e fiscal. O resultado – sabemos – foram anos de estagnação econômica e taxas de desemprego recordes.
Recorda-se que a política fiscal – que é um dos principais instrumentos de política econômica à disposição do governo para estimular a economia, mediante o aumento do gasto público e as inversões privadas -, foi praticamente anulada no governo FHC, já que a perseguição das metas de superávit primário, impostas pelos organismos multilaterais e acolhidas passivamente sem contestação, retirava-lhe a capacidade de realizar investimentos e ampliar os programas sociais.
Mas a justificativa para proceder dessa maneira era menos de ordem prática do que de ordem político-doutrinária – essa mesma ordem político-doutrinária que foi a pique, estrondosamente, na crise das hipotecas. Por mais estranho que possa parecer, avaliado da perspectiva dos remédios utilizados para debelar a crise atual, o objetivo central do governo FHC, de subordinar o Estado e a sociedade ao mercado, implicava tornar impotentes as políticas econômicas. E assim foi feito. Isso, sob a justificativa de que tais políticas eram tidas pelos mercados financeiros como uma fonte potencial de “ameaças” – “ameaças”, sabe-se hoje claramente, à liberdade de especular a curto prazo com capitais voláteis, que na verdade punham em risco, como o fizeram, a continuidade da atividade produtiva e do emprego.
A opção de anular a intervenção do Estado na promoção do desenvolvimento - ou seja, deixar de estimular o crescimento do produto e do emprego - visava, segundo se dizia, a restabelecer a credibilidade e a reputação do governo junto ao mercado. Enquanto recorria ao poder do Estado para alienar o patrimônio público, o governo FHC intentava ao mesmo tempo convencer a sociedade de que somente longe das interferências do Estado o mercado seria capaz de transformar recursos financeiros de curto prazo em investimento produtivo, em empregos e bem-estar social.
Sabemos o que disso resultou. O crescimento prometido não seguiu à estabilidade de preços, uma demonstração cabal de que a destituição do papel do Estado na orientação dos investimentos, ao contrário do que fora prometido, viria comprometer ainda mais a credibilidade e a reputação do governo junto ao mercado – e observe-se que à frente do governo estava FHC, e não Lula, cuja imagem, malgré lui, converteria em pesadelo as noites mal-dormidas do industrial Mário Amato.
Como resultado da mera obtenção da estabilidade, o investimento estrangeiro direto, tão cortejado pelo governo FHC, não apareceu. Os recursos financeiros que ingressaram no País nos anos 1990 foram utilizados unicamente na compra de empresas estatais e privadas nacionais, não tendo resultado, portanto, em aumento da capacidade produtiva, das exportações ou do emprego. Na sua totalidade, destinaram-se à alienação do setor de serviços, um setor que, além de nada exportar, gerou remessas de lucros para o exterior, num momento em que a escassez de divisas tornava dramática a situação do balanço de pagamentos – o que, por sua vez, levava ao aumento dos juros e da dívida pública, à contenção da demanda, ao abandono da atividade produtiva e do emprego.
Para os trabalhadores, a destituição do papel do Estado na promoção do crescimento redundou em taxas de desemprego recordes. Nos oito anos de governo FHC, o número de desempregados cresceu à média de mais de 600 mil por ano, sem que tenha sido adotada alguma política compensatória. Durante quase uma década, os trabalhadores foram abandonados à própria sorte.
É sobre esse pano de fundo sombrio que se destaca agora o restabelecimento das políticas anticíclicas, que se instalam no lugar antes reservado ao exercício da fantasia - uma economia de mercado conduzida por forças automáticas que levariam ao pleno emprego.
O que se colhe de positivo da crise atual, no plano estratégico, é o reconhecimento de que o pleno emprego somente poderá ser alcançado mediante a intervenção do Estado. É em especial a política fiscal – espantalho dos neoliberais, agora em debandada – que se constitui em poderosa alavanca para estimular a demanda agregada e assegurar a manutenção do emprego.
Mas convém lembrar que o governo Lula somente pôde restabelecer as diretrizes de política econômica de inspiração na justiça social porque contou com o apoio da participação popular. Na ausência da participação popular, o risco de retrocesso estará sempre presente, daí a necessidade de nos mantermos vigilantes.
Rui Falcão, 65 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.
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