terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A HISTÓRIA DE CIRILLO, O ARAPONGA DO STF


09/12/2008

Leandro Fortes


Os funcionários do Supremo Tribunal Federal assistiram a uma manifestação de fúria do presidente da casa, Gilmar Mendes. A tarde da terça-feira 2 mal havia começado e as agências de notícias e os sites na internet começavam a noticiar a decisão do juiz Fausto De Sanctis, que condenou o banqueiro Daniel Dantas a dez anos de prisão. Não foi a condenação em si a provocar a ira de Mendes, mesmo se sabendo que o ministro transformou o caso Dantas em uma diatribe pelos direitos individuais contra o aterrador “Estado policial”. O ponto era a menção, na sentença do magistrado de primeira instância, de uma informação até então desconhecida por ele e pelo distinto público. “Agora pego esse cara”, afirmou, segundo relatos narrados à CartaCapital. O cara é De Sanctis.

À informação. Na página 281 da sentença há o registro de que, entre 4 de junho e 7 de julho, Hugo Chicaroni, condenado a sete anos de prisão por tentar corromper o delegado federal Victor Hugo Ferreira, ligou nove vezes para o telefone do coronel da reserva do Exército Sérgio de Souza Cirillo. A dupla pertencia aos quadros da mesma empresa, o Instituto Sagres, especializada, de acordo com o próprio site, em política e gestão estratégica aplicada. É de Chicaroni a jurisprudência, firmada em conversa gravada pela PF, de que Dantas usufrui de “facilidades” nos tribunais superiores do Brasil. Cirillo havia sido contratado por Mendes, 23 dias depois de deflagrada a Operação Satiagraha, para montar um núcleo de inteligência no STF. A investigação rastreou a troca de telefonemas a pedido da defesa de Chicaroni, que solicitou a quebra do sigilo à Justiça.

Ao tomar conhecimento do fato, Mendes declarou-se “surpreso” e solicitou uma investigação ao Ministério Público para saber se o coronel tem relações com Dantas. Cirillo disse à CartaCapital que nas nove vezes em que falou com Chicaroni tratou da impressão de cartões de visita do colega de trabalho. “Ele foi quem mais distribuiu cartões do Sagres, agora isso nos preocupa”, reflete Cirillo.

A entrada do coronel nesta história torna o episódio da Satiagraha, deflagrada em 8 de julho, e seus desdobramentos ainda mais intricados. Cirillo é um personagem capaz de colocar o presidente STF em uma saia-justa. O militar pode confirmar que foi no gabinete da presidência do tribunal que um repórter da revista Veja teve acesso a um relatório sigiloso do setor de inteligência sobre a possibilidade de ter havido escuta ambiental na Alta Corte. Apesar de inconclusivo, o tal relatório motivou uma reportagem de capa da revista, virou tema de debate nacional e serviu como elemento da tese do “Estado policial”, mais tarde reforçada pelo vazamento de um diálogo entre Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO).

Sabe-se, até o momento, que a Polícia Federal não encontrou nenhum vestígio da existência do tal grampo, mas o episódio provocou uma leve crise institucional. Mendes atribuiu o grampo até hoje não comprovado à Agência Brasileira de Inteligência e chamou o presidente Lula “às falas”. O Planalto, sob pressão, afastou o delegado Paulo Lacerda da direção da Abin.

O fato de o gabinete da presidência do Supremo vazar o documento à Veja, no determinado contexto, leva a algumas perguntas: por que se preferiu entregar à imprensa um documento inconclusivo do que levar às autoridades o temor da existência de um monitoramento ilegal? Se a presidência do Supremo não vê nenhum problema em repassar relatórios classificados como sigilosos a jornalistas, por que o assunto causa tanto mal-estar no tribunal, a ponto de o assessor de imprensa, Renato Parente, negar que o vazamento tenha partido do gabinete de Mendes?

Antes de Mendes assumir a presidência do STF, em 23 de abril de 2008, a segurança dos ministros e do tribunal estava nas mãos da Coordenadoria de Segurança e Transporte, ligada à Diretoria-Geral do Supremo. O ministro decidiu desfazer essa estrutura, criar a Secretaria de Segurança e subordiná-la diretamente à presidência. Ou seja, criou o seu próprio grupo de arapongas.

Mendes pretendia formar um núcleo de inteligência nos moldes daquele montado por José Serra, em 1999, no Ministério da Saúde, sob os auspícios do atual deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI dos Grampos. Para tal, seguiu os conselhos de um velho amigo e companheiro do governo Fernando Henrique Cardoso: o general Alberto Cardoso.

Foi Cardoso quem indicou ao cargo o coronel da reserva do Exército Joaquim Gabriel Alonso Gonçalves. Oficial de infantaria, Gonçalves é um especialista em estratégias de segurança e inteligência militar, embora nunca tenha sido um homem da área de informações. O coronel infante assumiu um dia após a posse de Mendes na presidência do STF. Três meses depois, conseguiu que o tribunal contratasse Cirillo para auxiliá-lo no trabalho.

Gonçalves conseguiu reorganizar a estrutura de segurança do STF. Dividiu-a em cinco sessões. A principal delas, a de Operações Especiais, ficou com a parte de “monitoramentos e varreduras eletrônicas”, em que se pretendia instalar o embrião do núcleo de inteligência desejado por Mendes. Foi desse setor que vazou para a Veja o documento, datado de 14 de julho de 2008, com o resultado de uma varredura realizada no dia 10 do mesmo mês, na qual se indicava a suspeita de ter havido algum tipo de escuta ambiental realizada nas cercanias do STF. Foi, na verdade, um meio vazamento.

Nas páginas da Veja, o documento que aparece tem apenas uma assinatura, a de Aílton Carvalho de Queiroz, chefe da Seção de Operações Especiais. O documento original tem, porém, outras quatro assinaturas suprimidas, porque uma delas indicava, com exatidão, a fonte do vazamento: a do coronel Joaquim Gabriel Alonso Gonçalves. Era a única carimbada e com a data exata da emissão do documento, 15 de julho – dia em que teria ocorrido o tal grampo no STF, publicado, um mês depois, pela Veja.

Ao depor na CPI dos Grampos, em 14 de outubro, Queiroz mostrou-se visivelmente agastado com o fato de ter tido o nome estampado, isoladamente, no documento publicado pela revista. Ao deputado Itagiba (PMDB-RJ) entregou uma cópia na qual aparecem os outros quatro signatários. Lá, revelou ter existido somente duas cópias do relatório da varredura, uma ficou com ele, outra, com a chefe de gabinete de Mendes, Isabel Cristina Ferreira de Carvalho. Questionado pelo deputado Domingos Dutra (PT-MA) sobre a origem do vazamento, Queiroz se esquivou da responsabilidade, mas deu uma pista. “Eu imagino que a própria presidência (do STF)”, afirmou.

Segundo informa o coronel Cirillo, a apresentação do documento e o repasse das informações sobre a varredura para a Veja foram combinados em uma reunião em que estavam presentes Gonçalves, seu superior, o chefe de Operações Especiais do tribunal, Aílton de Queiroz, e o assessor de imprensa de Gilmar Mendes, Renato Parente. Gonçalves fechou um acordo com os repórteres da Editora Abril para passar todas as informações sobre o relatório, mas sob a condição de não haver reprodução do papel, o qual ele havia carimbado e dado ciência, um dia depois de Queiroz e os outros três técnicos do tribunal terem assinado o documento. O assessor Parente confirma ter participado da reunião, mas nega ter avalizado qualquer tipo de acordo. “Foi a Veja que trouxe o documento e nos pediu para avaliá-lo”, garante, em dissonância com as declarações de Cirillo.

“O coronel Alonso Gonçalves ficou chateado porque o relatório acabou publicado”, conta Cirillo. No final, o vazamento acabou faturado na conta de Queiroz, logo afastado do cargo. Cirillo ficou de fora das negociações, mas acabou informado de tudo pelo companheiro de farda, quando os dois se sentaram para tentar entender os motivos que levaram Mendes a demiti-los, sem nenhuma explicação, em 1º de outubro – 45 dias depois da publicação da reportagem.

Cirillo, também oficial de infantaria, conheceu Gonçalves, mais antigo no Exército e mais velho, ao longo da carreira. O Instituto Sagres, do qual ele é um dos seis sócios-fundadores, é uma organização faz-tudo. A saber: organiza eventos, presta consultorias, promove capacitação e treinamento, e desenvolve projetos nas áreas de “política, estratégia, relações internacionais, defesa, preservação, conservação do meio ambiente, desenvolvimento sustentável, segurança, inteligência estratégica, promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e dos valores universais” – embora o coronel Cirillo seja um admirador confesso do general Emílio Garrastazu Médici e chame o golpe de 1964 de “revolução democrática”.

Cirillo, contudo, nada tem a ver com Médici. Cordial, recebeu a reportagem da CartaCapital em casa, uma chácara onde funciona um clube de tênis, no Lago Sul de Brasília. Ali conversou sobre os dois meses em que trabalhou ao lado de Gonçalves na Secretaria de Segurança do STF. O oficial foi contratado como assessor, em função de confiança. Há integrantes do Instituto Sagres no governo Lula. Também pertence à organização Homero José Zanotta Vieira, assessor de comunicação do general Jorge Felix, ministro-chefe do GSI. Zanotta é o responsável pelo relacionamento da pasta com a imprensa. O GSI, entre outras atribuições, comanda a Abin e está à frente de uma investigação interna sobre a participação da agência no suposto grampo telefônico do Supremo.

O Sagres também presta serviços ao governo de São Paulo. Mais especificamente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente, comandada por Francisco Graziano. Parece até piada: Graziano ficou conhecido como “o Corvo”, ao ser associado, nos primeiros meses do governo Fernando Henrique Cardoso, à divulgação de grampos que comprometiam um colega de Esplanada envolvido nas negociações do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Graziano acabou demitido e passou anos na geladeira política.

A contribuição de Cirillo aos planos de Gilmar Mendes tem a ver, porém, com um conhecimento específico tocado por um setor do instituto, o Núcleo de Inteligência Prospectiva e Estratégica (Nipe). De acordo com as informações do site da organização, o tal núcleo foi criado para “subsidiar” o trabalho de inteligência desenvolvido pelo Sagres e, “por vezes”, de alguns clientes. Mas o trabalho do coronel ficou apenas no campo das boas idéias. Ele mal teve tempo de iniciar um plano de assessoria estratégica para o presidente do STF. “Eu estava me inteirando quando fui, de repente, demitido”, explica.

A demissão da dupla de coronéis pegou a Secretaria de Segurança do STF de surpresa. Na manhã do dia 1º de outubro, logo depois de chegar para iniciar o expediente, Gonçalves foi chamado à sala do diretor-geral do Supremo, Alcides Diniz da Silva. Lá, foi informado da decisão de Mendes de demiti-lo e a Cirillo. Apesar da insistência em saber a razão da dispensa sumária, Alonso nada conseguiu arrancar de Silva. Eram, simplesmente, as ordens do presidente do tribunal. Para o lugar do coronel, Mendes nomeou uma primeiro-tenente da Polícia Militar do Distrito Federal, Ana Lúcia de Freitas Rossi, ex-oficial de segurança da ministra Ellen Gracie, quando esta ocupou a presidência do tribunal.

Indignado, Gonçalves exigiu uma audiência com Mendes. Antes, foi ao colega Cirillo e sentenciou: “Nossas cabeças rolaram”. No gabinete do presidente do STF, ouviu duas histórias incríveis, estopins, segundo o ministro, da demissão. A primeira dizia respeito ao juiz Carlos Gustavo Direito, filho do ministro Carlos Alberto Direito, a quem o coronel se negou a colocar à disposição, tarde da noite, os serviços de funcionários do STF encarregados de cuidar do embarque e despacho de bagagens dos ministros no aeroporto de Brasília. Os servidores do tribunal já haviam, de forma irregular, mas a título de gentileza, levado as malas do filho do ministro ao aeroporto da capital federal duas vezes no mesmo dia. À noite, quando o juiz Direito decidiu embarcar, pela terceira vez, para o Rio de Janeiro, o coronel perdeu a paciência com a chefe de gabinete de Direito pai, Ana Maria Neves. E deixou o rapaz cuidar sozinho do check-in.

Ainda estupefato diante da justificativa apresentada por Mendes, Gonçalves teve de ouvir outra história. Desta vez, o protagonista era o ministro Eros Grau, a quem o coronel Alonso instou, mais de uma vez, a cumprir uma norma burocrática simples: assinar a ficha de horas extras do motorista do gabinete. Em quatro oportunidades, Grau, apesar de carimbar o documento, delegava à chefe de gabinete, Alexandra Matsuo, a missão de assinar o documento. O militar recusava-se a aceitar a papelada. Quando devolveu a ficha pela quarta vez, recebeu um recado irritado do ministro, anexado em forma de bilhete enviado à chefe de gabinete. “Não posso ficar preocupado com detalhes. Resolve”, escreveu.

A Gonçalves, Mendes alegou, entre outras coisas, que, como presidente do STF, tinha como missão comandar um colegiado de ministros, razão pela qual deveria se manter sensível às demandas dos colegas. “Agora percebo que o motivo pode ter sido a ligação de Chicaroni com o Sagres”, avalia Cirillo. Se ele estiver certo, Mendes pode ter demitido os coronéis para tentar se livrar de uma dupla com imenso potencial de encrenca, depois da prisão de Chicaroni. Teria, no entanto, de explicar a razão de, agora, dizer-se “surpreso” com o registro do juiz De Sanctis sobre as ligações de Chicaroni e Cirillo.

O novo imbróglio a envolver o STF, o Instituto Sagres e Daniel Dantas poderá ajudar a Polícia Federal a sair do atoleiro em que se meteu desde setembro, quando começou a investigar o suposto grampo em Mendes. O presidente do inquérito, delegado William Morad, ouviu mais de cem pessoas, mas ainda não tem um único indício de que o crime tenha sido sequer cometido. No dia 19 de novembro, Morad ouviu o coronel Gonçalves. O depoimento do antigo auxiliar do ministro Mendes está sob sigilo. O próximo convocado deverá ser o coronel Cirillo.

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