O Poder Judiciário,
como toda e qualquer realização humana, está sujeito às mesma falências e
imperfeições a que o ser humano está sujeito. Não é porque alguém é juiz, mesmo
que da mais alta corte do país, que escapa das insuficiências, defeitos,
paixões ou mesmo simples condicionantes capazes de virem a tisnar a atuação dos
homens em geral e, por conseguinte, a do próprio Judiciário, interferindo com a
isenção, equilíbrio e serenidade que deveriam caracterizar tal Poder.
Este é um motivo,
embora não o único, pela qual o chamado duplo grau de jurisdição é
importantíssimo para ao menos tentar prevenir ou minimizar a realização de
injustiças, de decisões suscitadas por alguma destas indevidas causas
prejudiciais ao cumprimento do Direito. Por isto, todos os povos civilizados
consagram a obrigação de que os réus sejam submetidos a mais de uma instância
de julgamento, sendo excepcionalíssimos os casos em que há dispensa desta
exigência.
A Constituição
brasileira não foge a este padrão. Assim, justamente por ser incomum a
transgressão deste valioso principio, é que foi necessária a previsão
constitucional do artigo 101, I, "b", para que titulares de certos
cargos fossem diretamente julgados pelo Supremo Tribunal Federal, com o que
ficaria suprimida pelo menos uma instância de apreciação da matéria. Sem
embargo, ao arrepio dele, no julgamento da Ação Penal 470, vulgarmente
conhecida, sob os auspícios da imprensa, como mensalão, todos os réus, mesmo
quando não se enquadravam na hipótese deste dispositivo, foram privados desta
garantia elementar. Nenhuma justificativa prestante de Direito foi apresentada
para fundar tão esdrúxulo comportamento.
Ao serem apreciados
os embargos interpostos pelos condenados, o STF volta a reconsiderar
parcialmente a matéria, sem que se possa, contudo, falar em duplo grau, pois é
o mesmo órgão que a apreciou originalmente e que por força de vias recursais
volta a examiná-la. Dantes o julgamento esteve intoxicado por um clima
emocional provocado não pela suposta "opinião pública", como muitas
vezes se diz, mas, na verdade pela "opinião publicada", visto que é a
ela que se atribui tal qualificativo.
Já agora, conquanto
ainda não dissipada a mesma ambiência, pelo menos ela não tem mais a desabrida
intensidade anterior. É de presumir, portanto, que o peso da vontade da
imprensa não tenha a incomensurável força anterior. Não se pretende aqui
rememorar as posições que vieram a ser adotadas em desacordo com nossa tradição
jurídica, mas simplesmente focar um único caso, por ser, possivelmente, o mais
extremado exemplo de descompasso com o que até então se tinha como óbvio. A
saber: os réus devem ser considerados inocentes até prova em contrário. Ninguém
poderá ser condenado meramente com base em suposições e muito menos por
presunção de que a autoridade superior, apenas por sê-lo, deve ser considerada
incursa em crime imputado a subordinados seus como se existira uma
responsabilidade objetiva inculcável a quem ocupe a cúpula de um organismo
público. Aliás, se este fosse o princípio adotável teria de ser levado, embora
absurdamente, a suas últimas consequências.
Ora, foi
precisamente uma pressuposição de tal ordem que fundou a condenação do
ex-ministro José Dirceu. Com efeito, se algo existira contra ele, se alguma
conduta reprovável lhe fosse direta e pessoalmente irrogável ela teria sido
apontada e esmiuçada. O mero fato de sua condenação fundar-se na posição que
ocupava e na suposição de que deveria conhecer os mal feitos apontados, vale
como prova cabal de que nada foi contra ele encontrado. No mínimo, então, a
penalização que se lhe atribuiu teria de ser muito mais leve e não equiparável
a sanções que se aplicam em face de crimes gravíssimos. Este segundo exame da
Corte Suprema, é pois, a ocasião adequada para corrigir-se o excesso e as
singularidades que levaram um jurista ilustre e hoje membro daquela corte a mencionar
o julgamento da Ação Penal 470 como "um ponto fora da curva".
Fonte:Consultor Jurídico
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