TINHA OUVIDO FALAR
POUCO DE ALI KAMEL, CHEFE DE TELEJORNALISMO DA GLOBO, ATÉ CONHECÊ-LO NO
CONEDIT. É o conselho editorial das Organizações Globo.
Sob o comando de João
Roberto Marinho, o Conedit reúne os editores das diversas mídias da Globo para
alinhar ações e debater assuntos. As reuniões são realizadas às terças, por
volta das 11 horas, no prédio da Globo no Jardim Botânico, no Rio.
Frequentei-as ao longo dos dois anos e meio em que fui diretor editorial das
revistas da Globo. Quando cheguei, Kamel já estava lá, e ali permaneceu depois
que saí.
A referência mais
longa que eu tivera dele veio de um jornalista da Abril que o procurara em
busca de emprego. A operação deu certo. O jornalista me contou que lera que
Kamel valorizava gente que tivesse passado por revistas, por ser mais apta a
mexer com palavras. O próprio Kamel passara pela Veja no Rio antes de se fixar
nas Organizações Globo.
Kamel não confirma o
folclore do carioca simpático, ao contrário de outros editores com quem convivi
naquelas manhãs de terça. Seu chefe, Carlos Schroder, um gaúcho afável e sempre
com um sorriso no rosto, parece mais carioca que ele.
De um modo geral, o ambiente
no Conedit reflete o humor, a alegria, a capacidade de rir dos cariocas. (E
também a falta de pontualidade.) Mesmo Merval Pereira, colunista de várias
mídias da Globo e ex-diretor do jornal, ri com frequência – uma surpresa para
quem lê seus textos em geral num tom de elevada preocupação, quase sempre
ligada a um pseudopecado mortal de Lula.
Kamel, pela
importância da TV, é uma presença destacada no Conedit. Sua expressão solene
sublinha esse papel. Não sei se Kamel costuma beber no bar com os amigos para
falar bobagens como futebol, mas não me pareceu.
O que inicialmente
mais me chamou a atenção em Kamel, e em muitos outros ali, foi a obsessão com
São Paulo. “Os jornais de São Paulo” são constantemente citados, como se
representassem o mal. Não sou exatamente um admirador nem do Estadão e muito
menos da Folha, mas achava engraçada a presença dos “jornais de São Paulo” nos debates. Nós,
jornalistas de São Paulo, jamais nos referimos aos “jornais do Rio”.
Não é exatamente
confortável ser um paulista naquele plenário, logo entendi. Eu me sentava num
canto próximo da porta, por razões de conforto. “Este é o canto dos paulistas”,
ouvi, em tom de brincadeira, uma vez, de Luiz Erlanger, uma espécie de RP do
alto escalão das Organizações.
Havia uma alta
rotatividade naquele canto. O ambiente é carioca, para o bem e para o mal. E o
ressentimento pelo tamanho que São Paulo tomou no Brasil acaba repercutindo, de
uma forma ou de outra, em paulistas que participem do Conedit.
Ali Kamel não
facilita a vida de ninguém, logo vi. Não é hospitaleiro. Lembro o dia em que
Kamel foi apresentado ao jornalista Adriano Silva, na sede da Globo no Rio de
Janeiro. Adriano estava sendo contratado com a missão de chacoalhar o
Fantástico.
Adriano fizera isso
na Superinteressante. Daí o interesse da Globo. Quem negociou com Adriano foi
Carlos Schroder, então diretor de telejornalismo da Globo e hoje seu
diretor-geral. Eu estava com ambos no prédio do Jardim Botânico quando Ali se
aproximou.
Não deu um sorriso
para Adriano. Seco, quase ríspido, colocou a Superinteressante na conversa —
afirmou que a enteada a lia — para comentar supostos erros da revista. Ficou
claro naquele momento que a vida de Adriano perto de Kamel não seria fácil. Não
foi.
Adriano logo foi
tocar sua vida longe da Globo, e o Fantástico continuaria a padecer dos
problemas que levaram a Globo a procurá-lo — desinspiração editorial, perda de
repercussão e um Ibope brutalmente em queda para um programa que se confundira
com a noite de domingo dos brasileiros por muitos anos.
O caso do Fantástico
me faria lembrar um comentário que certa vez ouvi, segundo o qual a força
criativa da Globo repousava em Boni, “um fanático guardião da qualidade”. Achei
isso podia fazer sentido ao ler que, numa corrida em que Galvão Bueno gritou
triunfal “eu já sabia, eu já sabia!” quando Senna entregou a vitória ao segundo
piloto de sua equipe, Boni teve uma reação irada no bastidor. “Se sabia, por
que não contou para o espectador?”, perguntou a Galvão.
No Conedit, numa mesa
em forma de U, João Roberto se senta no centro, na reunião. À sua
esquerda, numa das laterais, fica
Merval. Na esquerda, na outra lateral, Kamel. Há uma tensão muda entre os dois,
uma espécie de duelo pela preferência e pela simpatia do chefe. São os que mais
falam lá.
Não daria o prêmio de
simpatia a Kamel. E nem o de originalidade. Logo percebi que ele expressava com
ênfase, com a fé cega de um jihadista, amplificando-as, as conhecidas ideias
das Organizações Globo.
Não havia desafio a
essas ideias, não havia uma tentativa de reolhá-las e reavaliá-las. Bolsa Família? Assistencialismo. Ponto. Cotas
em universidades? Absurdo, Ponto.
Um dia comentei isso
com Luiz Eduardo Vasconcellos, sobrinho de Roberto Marinho e acionista das
Organizações. Luiz teve cargos executivos durante muitos anos, mas depois se
recolheu às funções de acionista minoritário.
É simpático,
interessado nas coisas do mundo, simples no traje e no trato, como aliás os
primos. Você não diz que ele é um dos donos da Globo se se sentar numa reunião
do Conedit sem conhecê-lo.
“Sinto falta de
pensamentos alternativos na reunião”, comentei com ele num almoço depois da
reunião do Conedit. “A sensação que tenho é que as pessoas, principalmente o
Kamel e o Merval, falam apenas as coisas que imaginam que o João vai gostar de
ouvir.”
Quanto isso devia
estar me incomodando estava claro em meu ataque de sinceridade no almoço. Era
evidente o risco de que meu comentário fosse espalhado, ainda que Luiz Eduardo
sempre tenha me parecido discreto e reservado.
Nas eleições de
2006, meu diagnóstico do Conedit pareceu
se confirmar para mim. João Roberto tinha um tom sereno ao debater a campanha.
Vi João criticar várias vezes ações de militantes petistas, mas jamais o vi
sair do tom no Conedit.
Curiosamente, dada
sua posição de dono, o ambiente muitas vezes não refletia a tranquilidade de
João Roberto. Kamel e Merval davam um tom épico, em branco e preto, a muitas
discussões políticas. Pareciam odiar Lula e qualquer coisa que partisse do
governo petista. E pareciam também querer que João Roberto soubesse disso.
Se o julgamento deles
fosse acertado, Lula teria errado em todas as decisões que tomou em seus oito
anos de administração. Quanto aquela inflamação toda era genuína ou não, é uma
dúvida que carrego até hoje. Será que eles pensam mesmo aquilo, ou no bar, com
os amigos, dão uma relaxada?
Não sei.
Minha intuição é que,
como o poeta segundo Fernando Pessoa, o fingimento é tanto que uma hora você
acredita no que fingia antes acreditar. A alternativa é um sentimento
automassacrante de que você é uma pena de aluguel.
Há uma lenda urbana
segundo a qual Kamel seria o homem por trás da ideologia das Organizações
Globo, o “Ratzinger” da empresa. Kamel não é nenhum Hayek, ou Friedman. Não é
formulador de pensamentos, não é um filósofo, não é carismático, não é nada
daquilo que confere a alguém o poder de persuadir outras pessoas pelo vigor não
dos gritos mas das ideias.
Uma designação
provavelmente mais próxima da realidade é que Kamel comanda os “aloprados” da
Globo. Relembremos. Num determinado momento da campanha de 2006, veio à cena,
na mídia, a expressão “aloprados”, para designar petistas mais apaixonados. A
certa altura, Lula disse a João Roberto Marinho que seguraria os “seus
aloprados”, mas que queria que os “aloprados do outro lado” também fossem
controlados.
Foram? Basta ouvir um
comentário de Jabor ou um artigo de Merval para saber que não. A cobertura em
2010 do atentado da bolinha de papel contra Serra, ou mais recentemente a forma
como foi tratado o julgamento do Mensalão, mostra que os aloprados estão de
mãos livres na Globo.
Uma possibilidade que
deve ser considerada é que aloprados não sejam exatamente alguns comentaristas
ou colunistas, ou mesmo diretores da área jornalística – mas a própria Globo,
em sua alma e em sua essência.
Paulo Nogueira, editor do Diário do Centro do Mundo
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