Em
entrevista ao jornal português Expresso, o ex-presidente Lula afirma que o
Brasil conseguiu provar que é possível crescer e distribuir renda ao mesmo
tempo; ele também abordou temas como a espionagem americana; "a presidente
Dilma se comportou como a chefe de Estado de um país que teve a sua soberania
ferida. Falou o que 200 milhões de brasileiros queriam falar. E foi além: deu
dimensão prática à indignação do povo brasileiro, ao adiar a visita oficial que
faria aos Estados Unidos", disse ele; íntegra
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- Em entrevista ao jornal português Expresso, o ex-presidente Lula abordou
temas como espionagem americana, Copa do Mundo, integração da América Latina,
além da relação entre o Brasil e Portugal. Confira a íntegra:
Por
Maria da Paz Trefaut – São Paulo
O
ex-Presidente brasileiro, Lula da Silva, prefaciou o livro de José Sócrates “A
Confiança no Mundo” e virá a Lisboa quarta-feira para assistir ao lançamento da
obra. Numa entrevista ao Expresso, à qual respondeu por escrito, explica porque
o fez e comenta o escândalo da espionagem da internet e das comunicações
oficiais de países como o Brasil feita pela NSA norte-americana. Fala, também,
das recentes manifestações nas grandes cidades brasileiras, do Mundial de
Futebol e da necessidade de uma política económica alternativa aos dogmas do
neoliberalismo.
Porque
aceitou fazer o prefácio do livro de José Sócrates?
Porque
sou contra a tortura. Acho extremamente significativo que um homem, que foi
primeiro-ministro de Portugal, tenha a humildade de voltar para a universidade
e investigar um tema tão forte e de tanta importância para a promoção dos
direitos humanos quanto a tortura.
Fora
a tradicional retórica de países irmãos, como estreitar, de facto, os laços
entre Brasil e Portugal?
Não
basta dizer que somos países irmãos, mas é importante dizer que a nossa relação
já é muito maior do que isso. O nosso intercâmbio cultural é muito forte, o
nosso diálogo político é substantivo. Há muitos investimentos brasileiros em
Portugal, como a Embraer, e de empresas portuguesas no Brasil, como a Portugal
Telecom. Temos um grande potencial de parceria para atuar em países terceiros,
principalmente na África e devemos explorá-lo mais. Temos que nos preocupar com
o que faremos daqui para a frente. Trabalhar as parcerias das nossas
universidades e das nossas empresas. Precisamos ter mais estudantes brasileiros
em Portugal e mais portugueses no Brasil. De mais colaboração científica,
artística e de mais turismo entre os dois países.
Como
viu a reação de Dilma ao escândalo Snowden, discursando na Assembleia Geral da
ONU e confrontando Obama por causa da ciberespionagem visando o Brasil?
A
Presidente Dilma se comportou como a chefe de Estado de um país que teve a sua
soberania ferida. Falou o que 200 milhões de brasileiros queriam falar. E foi
além: deu dimensão prática à dimensão da indignação do povo brasileiro, ao
adiar a visita oficial que faria aos Estados Unidos. São gravíssimos os atos de
espionagem praticados pela Agência Nacional de Segurança dos EUA contra os
chefes de Estado do Brasil e do México. Nada pode justificar a interceção de
telefonemas e a invasão da correspondência reservada dos Presidentes da
República de países amigos, ferindo a sua soberania e desrespeitando os
princípios mais elementares da legalidade internacional. Imagine o escândalo
nos Estados Unidos se algum país amigo intercetasse ilegalmente, sob qualquer
pretexto, os telefonemas e a correspondência reservada de seu Presidente…
Sempre
apoiou Cuba, o regime bolivariano da Venezuela e Evo Morales, na Bolívia,
muitas vezes contrariando sectores da opinião pública brasileira. Mantém essa
linha?
Sou
um defensor da autodeterminação dos povos. Cada país deve definir a sua
economia, a sua organização política e partidária, a sua história e cultura.
Isso vale para Portugal, para o Brasil, para os Estados Unidos, e deve valer
também para Cuba, Venezuela e Bolívia, que têm o direito de escolher seus
caminhos, sem ingerências. O melhor caminho para a América Latina será o
decidido pelo povo e governos da região. Vejo na Europa, muitas vezes, uma
visão simplificada e deturpada da América Latina.
Evo
Morales, por exemplo, governa a Bolívia há dez anos, democraticamente. Foi
eleito e reeleito, com mais de 60% dos votos, tendo quase todos os meios de
comunicação contra si. A Bolívia está crescendo e distribuindo rendimento.
Antes de Evo, o país vivia em crise institucional permanente. Morales é melhor
e mais democrático do que a maioria dos que estão por aí, em diversos
continentes.
O
Brasil deve continuar a apostar no Mercosul, na integração da América do Sul,
na Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e na América
Latina. Foi assim que o nosso continente deu um salto histórico na última
década. Por ser a maior economia do continente, o Brasil deve continuar a
investir, política e economicamente, no desenvolvimento e integração regional,
respeitando a soberania de cada país.
A
China pretende financiar e construir novos canais no Panamá. Como vê esta
iniciativa e, de um modo geral, a penetração económica chinesa na América
Latina?
Um
yuan investido pelos chineses na América Latina é tão importante quanto um euro
investido pelos europeus ou um dólar americano. Qualquer soma que seja para o
bem da América Latina, respeitando as premissas de cada país, é bem-vinda.
Sob
a égide do PT (Partido dos Trabalhadores, esquerda), 40 milhões de brasileiros
saíram da pobreza e os bancos lucraram como nunca. É possível governar,
contentando empresários e trabalhadores ao mesmo tempo?
Adotámos
um novo modelo de desenvolvimento baseado na distribuição do rendimento e na
inclusão social. O Brasil libertou-se do absurdo dogma neoliberal de que é
impossível crescer ao mesmo tempo que se distribui riqueza. Fizemos justamente
isso, com políticas ativas de transferência de rendimento e subida do salário
real. Foi o facto de 36 milhões de pessoas terem saído da pobreza e de 40
milhões terem ascendido à classe média que fez aumentar a faturação das
empresas produtivas e dos bancos. Nestes dez anos, todos os sectores da
sociedade brasileira tiveram aumento de rendimento, mas o dos mais pobres
cresceu o triplo dos mais ricos.
Integrou
um movimento que levou à criação de uma Assembleia Constituinte e à reconquista
das liberdades democráticas. Hoje, porém, o Congresso é uma das instituições
mais desacreditadas do Brasil. Porquê?
O
Brasil vive o mais longo período de democracia da sua história. A crise de
credibilidade do Parlamento não é exclusivo nosso, existe no mundo inteiro. Os
estudiosos falam inclusive numa ‘crise da representação’.Mas o importante é
que, a cada nova eleição, o povo pode mudar os parlamentares, se quiser. E, no
caso brasileiro, o desgaste de imagem de muitos políticos não tem impedido o
país de avançar.
Uma
das principais críticas ao PT é a instrumentalização partidária do Estado. O
Supremo Tribunal Federal, com maioria de juízes indicada por governos do PT,
condenou ex-ministros e deputados por participarem num esquema de compra de
votos no Congresso (conhecido como ‘Mensalão’). Como vê este problema?
Não
houve nenhuma instrumentalização do Estado. Sempre que a esquerda ganha, a
direita acusa-a de instrumentalizar o Estado, com o objetivo claro de a inibir
de substituir, nos cargos de natureza política, as pessoas que estavam no
comando. O PT não foi apenas republicano na sua governação. A maioria das
pessoas que escolhemos para cargos de confiança já eram funcionários do Estado.
Eram competentes, caso contrário o governo não teria dado tão certo. Sobre a
outra questão, como ex-presidente da República, considero que não devo falar
sobre um processo que está na Suprema Corte e ainda não foi concluído.
Da
Turquia ao Brasil, a classe média manifestou-se em força, pedindo
transparência, combate à corrupção e boa aplicação dos investimentos públicos
(não em ‘elefantes brancos’ como os estádios do Mundial de Futebol, mas em
educação, saúde e transportes). Que lição se tira dessas manifestações?
Não
sei se as reivindicações na Turquia foram as mesmas do Brasil. O que sei é que
poucos países do mundo têm mais transparência e mecanismos de controlo dos
recursos públicos do que nós. Publicamos os gastos do governo em tempo real na
internet, há a Controladoria-geral da União, o Tribunal de Contas da União, um
Ministério Público independente, a Polícia Federal, os órgãos de vigilância
ambiental, a imprensa, ONG, sindicatos, todos fiscalizam os gastos do governo.
Só há uma maneira de combater a corrupção: denunciando e investigando. A
verdade é que a maior parte das denúncias de corrupção é feita por organismos
de controlo do próprio Estado. Ou seja, é o poder público que se fiscaliza a si
mesmo.
Sobre
o Mundial de Futebol, será uma oportunidade para as pessoas conhecerem o
Brasil. Eu vi a emoção dos japoneses chorando quando conquistaram as Olimpíadas
e não era de tristeza. Muitos dos principais investimentos em aeroportos e
transporte urbano que estão a ser feitos continuarão beneficiando a população.
É errado pensar que uma coisa tira dinheiro de outra. São investimentos
diferentes.
Acha
que o Brasil conseguirá manter elevadas taxas de crescimento após o Mundial de
Futebol e os Jogos Olímpicos?
Independentemente
do Mundial e das Olimpíadas, o Brasil tem planeados investimentos em
infraestrutura de longo prazo. O plano de concessões em infraestruturas prevê
325 mil milhões dólares de investimento em estradas, portos, aeroportos e
rodovias. A economia brasileira tem mantido um ritmo sustentável de crescimento
nos últimos anos e não estamos subordinados a esses eventos. Eles devem
contribuir para movimentar a economia, mas são apenas parte de uma série de
medidas económicas que visam garantir, não apenas o crescimento, mas também a
distribuição da riqueza. A Petrobras, por exemplo, tem investimentos previstos,
até 2017, de 236 mil milhões de dólares para ampliar a produção de petróleo.
Acha
que o modelo de crescimento dos BRIC está em causa por ter feito crescer o PIB
sem ter aprofundado a democracia?
Não
me cabe falar pelos demais BRIC, mas o sucesso do Brasil foi justamente ter
feito o PIB crescer com vasta inclusão social e ampliação da democracia.
Há
alguma alternativa para a desordem económica mundial e para o vácuo político
resultante da crise na Europa?
As
soluções para a crise europeia e económica mundial foram bem discutidas nos
encontros do G20 em Pittsburgh e Londres, em 2009. Lá, os líderes das maiores
economias do mundo definiram como metas o incentivo ao crescimento económico, o
fim dos paraísos fiscais e a regulamentação do sistema financeiro. O problema é
que as decisões políticas não foram postas em prática quando os governantes
retornaram aos seus países. Quando isso não acontece e só discutimos ajustes fiscais,
quem é prejudicado é o povo. Eu acredito que a solução para essa crise não será
económica, mas sim política. Infelizmente, os líderes políticos estão a delegar
as suas responsabilidades em técnicos de terceira ordem.
Como
vê a evolução económica da crise europeia? Acha que Portugal vai ser um exemplo
positivo ou negativo da intervenção do FMI, Banco Central Europeu e Comissão
Europeia?
Acredito
que não deveria ter sido exigido, a países como Portugal e Espanha, que possuem
economias consolidadas e alto rendimento per capita, um ajuste tão rigoroso em
tão curto espaço de tempo. Poderia ter sido negociada uma recuperação com um
prazo mais longo, sem a brutal recessão que aconteceu e sem tanto sacrifício da
população. Penso que a saída efetiva da crise europeia, que tem atingido
principalmente os trabalhadores e os mais pobres, só acontecerá quando for
retomada a perspetiva de crescimento com criação de empregos. Acho assustadora
a falta de esperança que se vê hoje na Europa, especialmente entre os mais
jovens.
Considera
que há uma crise do ideal socialista? Que pensa dos novos protestos
orquestrados através das redes sociais?
Continuo
acreditando nos ideais do socialismo democrático e na construção de uma
sociedade mais justa, mais solidária, mais humana. São valores cada vez mais
necessários e válidos para o mundo. A maioria das pessoas que tem saído às
ruas, mesmo sem conhecer essas doutrinas, tem defendido esses valores, não
repudiado. Os protestos no Brasil mostram que há uma juventude que quer mais, e
isso é saudável. Claro que há aqueles que confundem o direito de protestar com
o direito de depredar e saem em provocações sem sentido. E há aqueles que negam
a política. Isso é o mais grave. Aprendi que não há opção fora da política, do
diálogo, da democracia. Quando se nega a política, o que vem depois é pior, é o
regime da força, é a ditadura. Basta vermos o que aconteceu no Egito. Escrevi
em um artigo que a sociedade se tornou digital, mas a política continua
analógica. O desafio atual é tornar a democracia mais participativa, incluir
cada vez mais gente na política, os políticos ouvirem mais as pessoas e
trabalharem com mais afinco.
Depois
de deixar a presidência, tem feito diligências para aproximar o Brasil dos
países africanos, independentemente dos regimes políticos que adotam. De que
maneira vê o protagonismo africano na próxima década e que papel cabe ao Brasil
nesse jogo geopolítico?
O
Brasil e a África têm afinidades culturais e problemas semelhantes e a
aproximação permite que possamos aprender uns com os outros. Estou convencido
que está surgindo uma nova África. A democracia está a consolidar–se na maioria
dos países da região. Mesmo com a crise internacional, o continente africano
cresceu na última década a uma taxa média de 5% ao ano. O fluxo de comércio
entre Brasil e África quintuplicou em dez anos. Quero compartilhar a
experiência bem–sucedida do Brasil no combate à pobreza, na ampliação da
produção de alimentos, na produção de energia limpa. Não queremos exportar
modelos. Desejamos dialogar sobre a nossa experiência, respeitando a cultura e
as condições políticas locais. Brasil e Portugal poderiam atuar de forma mais
integrada, principalmente nos países de língua portuguesa.
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