15 de janeiro de 2009
Luana Lila e Rodrigo Martins
O som estridente da marreta contra uma coluna de concreto ecoa pela ladeira dos Peixes, na Vila Aimoré, zona leste de São Paulo. Ao redor do grupo de trabalhadores, um cenário de destruição. Ao menos uma dezena de casas já havia sido demolida por ordem da prefeitura, após a remoção das famílias que concordaram em receber um auxílio aluguel de 300 reais para abandonar a várzea do rio Tietê, severamente castigada pela megaenchente de 8 de dezembro. De uniforme azul, o cabisbaixo pedreiro Crispim Antonio de Souza, 50 anos, lamenta em voz baixa. “Hoje estou derrubando a casa dos outros. Amanhã, pode ser a minha própria casa.”
Crispim mora com a esposa, dois filhos e dois netos em uma casa de quatro cômodos no Jardim Pantanal, bem próximo de onde cumpria a amarga tarefa de demolição. No dia da cheia, os móveis de sua casa ficaram cerca de meio metro submersos. Somente após duas semanas, a água saiu da residência. Passados 35 dias da enchente, porém, a inundação persistia no quintal, na calçada e nas ruas do bairro, completamente tomadas por um lodo escuro e fétido, mistura das águas da chuva com o esgoto que deixou de ser bombeado por uma estação de tratamento que também ficou debaixo d’água. O cenário é recorrente em ao menos sete bairros do distrito paulistano Jardim Helena, que faz divisa com os municípios de Guarulhos e Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, especialmente entre as casas mais próximas do rio Tietê e seus afluentes.
“Não quero sair daqui. Com 300 reais, não consigo alugar uma casa para a minha família. Mas vou fazer o quê? Não tenho opção”, resigna-se o pedreiro Crispim. Boa parte dos moradores, no entanto, mostra-se resistente à proposta do auxílio aluguel oferecido pela prefeitura, e já apelidado de “bolsa-despejo” por movimentos sociais que atuam na região. O governo municipal garante o benefício por seis meses, período que pode ser renovado sucessivas vezes, até o governo abrigar em moradias todos os afetados pelas inundações. Das 2.752 famílias cadastradas até 13 de janeiro, 794 optaram por receber o auxílio-aluguel, condicionado à demolição das casas antigas, e 370 já receberam a verba. Outras 280 famílias foram acomodadas em apartamentos. Mas a desconfiança é grande.
“Há três anos, funcionários da prefeitura vêm aqui, dizem que estamos irregulares, temos de sair, mas nunca me ofereceram uma casa. Como posso acreditar que, depois de seis meses, o auxílio não será cortado? Só saio da minha casa para entrar em outra”, afirma a dona-de-casa Cledionice Aparecida da Silva, 39 anos, que mora em um sobrado tomado pelas águas com outras 17 pessoas da família de garis e catadores de material reciclável. A cozinha da casa chegou a ficar submersa até a altura da cintura. Agora, o lodo da enchente está concentrado no quintal, onde só é possível transitar sobre tábuas suspensas por tijolos.
A desconfiança é ainda mais forte entre aqueles que tentaram, em vão, ser incluídos em um programa habitacional. O aposentado Rosalvo José dos Santos, 66 anos, por exemplo, está na fila para comprar um imóvel da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) desde 1997. Pai de uma jovem portadora de necessidades especiais, ele teria prioridade. Mas nunca foi chamado. “É por isso que não confio na proposta da prefeitura.”
Diante das constantes reclamações de moradores, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou com uma ação pedindo a suspensão das remoções até que o processo seja discutido com a população. “O povo tem o direito de participar da construção de seu próprio destino. Estamos falando de pessoas, e não objetos que podem ser removidos de um lugar para o outro. Eles querem sair do local, mas com um mínimo de dignidade”, afirma Carlos Henrique Loureiro, coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria. Ele também lembra que deslocar a população de forma não planejada é apenas uma forma de transferir o problema, “você tira a pobreza de um lado e coloca do outro”.
Exemplos disso não são difíceis de ser encontrados, como é o caso da família do pedreiro João Luiz da Silva, 55 anos. Eles moravam na extinta Vila Nair, que foi removida para a construção do anel viário que liga a Avenida Jacu Pêssego, na zona leste de São Paulo, com a rodovia Ayrton Senna. Com o dinheiro da indenização, 9 mil reais, compraram uma casa no Jardim Iguatemi, e foram novamente despejados, desta vez para a construção de um dos trechos do Rodoanel. Com a indenização de 11 mil reais, mais algumas economias, compraram um barraco na Chácara Três Meninas, um dos bairros castigados pela cheia do Tietê e alvo de novas desapropriações. “Só saio daqui para uma casa definitiva. Essa é a terceira vez que querem nos expulsar”, diz Silva, cansado da vida itinerante.
A enchente na várzea do Tietê é a mais grave dos últimos 15 anos, segundo os moradores. Estima-se que até 3 mil famílias tenham sido atingidas pelas inundações. De acordo com a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado, em apenas um dia os radares registraram chuva com intensidade de 84 milímetros em média na Bacia do Alto Tietê, o que corresponde a dois terços de toda a chuva prevista para dezembro.
Para muitos moradores, no entanto, a culpa da cheia não deve ser atribuída exclusivamente à natureza. “Como é possível demorar mais de um mês para a água voltar ao rio? Faça sol ou faça chuva, a área inundada permanece a mesma”, afirma Ronaldo Delfino de Sousa, uma das lideranças do Movimento por Urbanização e Legalização do Pantanal (Mulp). “É isso que leva o povo a desconfiar que a tragédia pode ter sido causada intencionalmente e persiste porque o governo não moveu uma palha para tentar drenar a água e limpar os córregos e bueiros”.
Revoltada, a moradora de um conjunto habitacional que sofreu com as inundações constrangeu o prefeito Gilberto Kassab (DEM) no início de janeiro, ao cobrar uma postura mais efetiva da prefeitura. “Vamos por o pé na lama? Nós queremos o senhor lá para sentir na pele o que a gente sente”, disse na ocasião. “Todos estão fazendo o maior esforço possível para ficar ao lado das famílias”, respondeu Kassab, reiterando que a prefeitura está oferecendo o auxílio aluguel e busca soluções para resolver o impasse.
Na região, considerada uma área de risco por autoridades municipais e estaduais, o governador José Serra (PSDB) pretende construir o Parque Várzeas do Tietê, o maior parque linear do mundo, com 75 km de extensão e 107 km² de área, entre as cidades de São Paulo e Salesópolis. As obras foram iniciadas em julho. Mas, para concluir a primeira fase do projeto de 1,7 bilhão de reais, 70% financiado pelo Banco Mundial, o governo precisa remover ao menos 2,6 mil famílias, segundo a Secretaria de Saneamento e Energia. Muitas delas atingidas pela cheia.
Além do interesse do governo estadual pela área, uma reportagem publicada pelo portal UOL revelou que as seis comportas da barragem da Penha foram completamente fechadas na madrugada da enchente, e só foram reabertas dois dias depois. O objetivo da manobra seria evitar um alagamento na marginal Tietê, onde o governo está realizando um conjunto de obras viárias orçado em 1,3 bilhão de reais. A denúncia levou o promotor Eduardo Valerio, do Ministério Público Estadual, a instaurar um inquérito civil, em meados de dezembro, para apurar se o fechamento da barragem poderia ter causado a inundação da zona leste de São Paulo.
“Ainda estamos investigando, mas aparentemente este incidente, isolado de outros fatores, não seria o suficiente para alagar toda aquela região, já que é um procedimento de rotina, realizado mais de 30 vezes ao longo de 2009”, afirma Valério. “Mas há fortes indícios de que o assoreamento do Tietê e as intervenções ambientais de grandes indústrias instaladas na região podem ter criado um ambiente favorável às enchentes. Se ficar comprovado que o governo foi omisso na fiscalização ou nas ações para desassorear o rio, o Estado pode ser responsabilizado pela tragédia, independentemente da existência de intencionalidade ou culpa”.
Por meio de nota, a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado, responsável pela autarquia que controla a barragem da Penha, afirmou que, mesmo com a abertura das comportas, a água não baixou por se tratar de uma área de várzea, “espaço natural de amortecimento das cheias”. Além disso, destacou que o próprio investimento na construção do Parque Várzeas do Tietê visa proteger as pessoas expostas às enchentes.
Enquanto não surge uma solução satisfatória para o impasse, a Defensoria Pública pede que a Justiça obrigue a prefeitura paulistana e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), ligado ao governo do Estado, a promover a drenagem e o manejo das águas fluviais contaminadas que estão nas comunidades, bem como a limpeza dos bueiros e a desobstrução de obstáculos. Além disso, destaca que a responsabilidade das ocupações ilegais nas margens do Tietê não devem ser atribuídas exclusivamente à comunidade pobre que habita a região, uma vez que o poder público disponibilizou infraestrutura urbana no local.
No Jardim Romano, por exemplo, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) inaugurou no ano passado um Centro Educacional Unificado (CEU). Na mesma rua Capachós, um conjunto habitacional financiado pela Caixa Econômica Federal também foi inaugurado recentemente. Os investimentos fizeram com que a prefeitura revisasse a planta genérica de valores do logradouro, usado como base para o cálculo do valor venal dos imóveis e do IPTU de 2010. A valorização chega a 187%. Só que, hoje, tanto a escola como a Cohab estão com a entrada bloqueada pelo lodo.
Muitos dos moradores que agora correm o risco de serem removidos da região possuem escritura do imóvel e pagam todos impostos. É o caso do ajudante de cozinha Adriano Clementino Barros, 45 anos, que só consegue sair de casa com um par de galochas de cano longo nos pés. “No dia da enchente, a água ficou até à altura do tornozelo dentro de casa”, comenta. “Passei 12 dias fora de casa, e quando voltei a água já havia baixado. Mas a calçada e a rua continuam nesse estado. Tenho de sair de galocha até para ir na padaria. E qualquer chuvinha faz o lodo entrar na minha casa. Passei o Reveillon com o pé na lama”.
Mesmo nas habitações precárias construídas em ocupações ilegais o poder público mostra-se presente. “Dá uma olhada nessa casa que foi demolida”, aponta o advogado Raimundo dos Anjos Silva, presidente da Associação de Moradores da Vila Aimoré. “Eles só deixaram de pé o poste de luz com marcador da Eletropaulo e o relógio de água da Sabesp. Sabe por quê? Eles ainda vão cobrar a última conta. Se era uma área de risco para a população, qual o sentido de o poder público investir para trazer água encanada, asfalto, escolas, postos de saúde, iluminação pública?”
Em comum, moradores, defensores públicos e promotores exigem que o governo passe a planejar melhor suas intervenções urbanas em vez de buscar soluções imediatistas para problemas tão complexos como a falta de moradia e a degradação ambiental. Até para evitar a repetição de dramas como o do pedreiro que pode se ver obrigado, por dever de ofício, a demolir a própria casa. Ou da família que corre risco de ser despejada pela terceira vez, sem destino certo.
Luana Lila e Rodrigo Martins
O som estridente da marreta contra uma coluna de concreto ecoa pela ladeira dos Peixes, na Vila Aimoré, zona leste de São Paulo. Ao redor do grupo de trabalhadores, um cenário de destruição. Ao menos uma dezena de casas já havia sido demolida por ordem da prefeitura, após a remoção das famílias que concordaram em receber um auxílio aluguel de 300 reais para abandonar a várzea do rio Tietê, severamente castigada pela megaenchente de 8 de dezembro. De uniforme azul, o cabisbaixo pedreiro Crispim Antonio de Souza, 50 anos, lamenta em voz baixa. “Hoje estou derrubando a casa dos outros. Amanhã, pode ser a minha própria casa.”
Crispim mora com a esposa, dois filhos e dois netos em uma casa de quatro cômodos no Jardim Pantanal, bem próximo de onde cumpria a amarga tarefa de demolição. No dia da cheia, os móveis de sua casa ficaram cerca de meio metro submersos. Somente após duas semanas, a água saiu da residência. Passados 35 dias da enchente, porém, a inundação persistia no quintal, na calçada e nas ruas do bairro, completamente tomadas por um lodo escuro e fétido, mistura das águas da chuva com o esgoto que deixou de ser bombeado por uma estação de tratamento que também ficou debaixo d’água. O cenário é recorrente em ao menos sete bairros do distrito paulistano Jardim Helena, que faz divisa com os municípios de Guarulhos e Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, especialmente entre as casas mais próximas do rio Tietê e seus afluentes.
“Não quero sair daqui. Com 300 reais, não consigo alugar uma casa para a minha família. Mas vou fazer o quê? Não tenho opção”, resigna-se o pedreiro Crispim. Boa parte dos moradores, no entanto, mostra-se resistente à proposta do auxílio aluguel oferecido pela prefeitura, e já apelidado de “bolsa-despejo” por movimentos sociais que atuam na região. O governo municipal garante o benefício por seis meses, período que pode ser renovado sucessivas vezes, até o governo abrigar em moradias todos os afetados pelas inundações. Das 2.752 famílias cadastradas até 13 de janeiro, 794 optaram por receber o auxílio-aluguel, condicionado à demolição das casas antigas, e 370 já receberam a verba. Outras 280 famílias foram acomodadas em apartamentos. Mas a desconfiança é grande.
“Há três anos, funcionários da prefeitura vêm aqui, dizem que estamos irregulares, temos de sair, mas nunca me ofereceram uma casa. Como posso acreditar que, depois de seis meses, o auxílio não será cortado? Só saio da minha casa para entrar em outra”, afirma a dona-de-casa Cledionice Aparecida da Silva, 39 anos, que mora em um sobrado tomado pelas águas com outras 17 pessoas da família de garis e catadores de material reciclável. A cozinha da casa chegou a ficar submersa até a altura da cintura. Agora, o lodo da enchente está concentrado no quintal, onde só é possível transitar sobre tábuas suspensas por tijolos.
A desconfiança é ainda mais forte entre aqueles que tentaram, em vão, ser incluídos em um programa habitacional. O aposentado Rosalvo José dos Santos, 66 anos, por exemplo, está na fila para comprar um imóvel da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) desde 1997. Pai de uma jovem portadora de necessidades especiais, ele teria prioridade. Mas nunca foi chamado. “É por isso que não confio na proposta da prefeitura.”
Diante das constantes reclamações de moradores, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou com uma ação pedindo a suspensão das remoções até que o processo seja discutido com a população. “O povo tem o direito de participar da construção de seu próprio destino. Estamos falando de pessoas, e não objetos que podem ser removidos de um lugar para o outro. Eles querem sair do local, mas com um mínimo de dignidade”, afirma Carlos Henrique Loureiro, coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria. Ele também lembra que deslocar a população de forma não planejada é apenas uma forma de transferir o problema, “você tira a pobreza de um lado e coloca do outro”.
Exemplos disso não são difíceis de ser encontrados, como é o caso da família do pedreiro João Luiz da Silva, 55 anos. Eles moravam na extinta Vila Nair, que foi removida para a construção do anel viário que liga a Avenida Jacu Pêssego, na zona leste de São Paulo, com a rodovia Ayrton Senna. Com o dinheiro da indenização, 9 mil reais, compraram uma casa no Jardim Iguatemi, e foram novamente despejados, desta vez para a construção de um dos trechos do Rodoanel. Com a indenização de 11 mil reais, mais algumas economias, compraram um barraco na Chácara Três Meninas, um dos bairros castigados pela cheia do Tietê e alvo de novas desapropriações. “Só saio daqui para uma casa definitiva. Essa é a terceira vez que querem nos expulsar”, diz Silva, cansado da vida itinerante.
A enchente na várzea do Tietê é a mais grave dos últimos 15 anos, segundo os moradores. Estima-se que até 3 mil famílias tenham sido atingidas pelas inundações. De acordo com a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado, em apenas um dia os radares registraram chuva com intensidade de 84 milímetros em média na Bacia do Alto Tietê, o que corresponde a dois terços de toda a chuva prevista para dezembro.
Para muitos moradores, no entanto, a culpa da cheia não deve ser atribuída exclusivamente à natureza. “Como é possível demorar mais de um mês para a água voltar ao rio? Faça sol ou faça chuva, a área inundada permanece a mesma”, afirma Ronaldo Delfino de Sousa, uma das lideranças do Movimento por Urbanização e Legalização do Pantanal (Mulp). “É isso que leva o povo a desconfiar que a tragédia pode ter sido causada intencionalmente e persiste porque o governo não moveu uma palha para tentar drenar a água e limpar os córregos e bueiros”.
Revoltada, a moradora de um conjunto habitacional que sofreu com as inundações constrangeu o prefeito Gilberto Kassab (DEM) no início de janeiro, ao cobrar uma postura mais efetiva da prefeitura. “Vamos por o pé na lama? Nós queremos o senhor lá para sentir na pele o que a gente sente”, disse na ocasião. “Todos estão fazendo o maior esforço possível para ficar ao lado das famílias”, respondeu Kassab, reiterando que a prefeitura está oferecendo o auxílio aluguel e busca soluções para resolver o impasse.
Na região, considerada uma área de risco por autoridades municipais e estaduais, o governador José Serra (PSDB) pretende construir o Parque Várzeas do Tietê, o maior parque linear do mundo, com 75 km de extensão e 107 km² de área, entre as cidades de São Paulo e Salesópolis. As obras foram iniciadas em julho. Mas, para concluir a primeira fase do projeto de 1,7 bilhão de reais, 70% financiado pelo Banco Mundial, o governo precisa remover ao menos 2,6 mil famílias, segundo a Secretaria de Saneamento e Energia. Muitas delas atingidas pela cheia.
Além do interesse do governo estadual pela área, uma reportagem publicada pelo portal UOL revelou que as seis comportas da barragem da Penha foram completamente fechadas na madrugada da enchente, e só foram reabertas dois dias depois. O objetivo da manobra seria evitar um alagamento na marginal Tietê, onde o governo está realizando um conjunto de obras viárias orçado em 1,3 bilhão de reais. A denúncia levou o promotor Eduardo Valerio, do Ministério Público Estadual, a instaurar um inquérito civil, em meados de dezembro, para apurar se o fechamento da barragem poderia ter causado a inundação da zona leste de São Paulo.
“Ainda estamos investigando, mas aparentemente este incidente, isolado de outros fatores, não seria o suficiente para alagar toda aquela região, já que é um procedimento de rotina, realizado mais de 30 vezes ao longo de 2009”, afirma Valério. “Mas há fortes indícios de que o assoreamento do Tietê e as intervenções ambientais de grandes indústrias instaladas na região podem ter criado um ambiente favorável às enchentes. Se ficar comprovado que o governo foi omisso na fiscalização ou nas ações para desassorear o rio, o Estado pode ser responsabilizado pela tragédia, independentemente da existência de intencionalidade ou culpa”.
Por meio de nota, a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado, responsável pela autarquia que controla a barragem da Penha, afirmou que, mesmo com a abertura das comportas, a água não baixou por se tratar de uma área de várzea, “espaço natural de amortecimento das cheias”. Além disso, destacou que o próprio investimento na construção do Parque Várzeas do Tietê visa proteger as pessoas expostas às enchentes.
Enquanto não surge uma solução satisfatória para o impasse, a Defensoria Pública pede que a Justiça obrigue a prefeitura paulistana e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), ligado ao governo do Estado, a promover a drenagem e o manejo das águas fluviais contaminadas que estão nas comunidades, bem como a limpeza dos bueiros e a desobstrução de obstáculos. Além disso, destaca que a responsabilidade das ocupações ilegais nas margens do Tietê não devem ser atribuídas exclusivamente à comunidade pobre que habita a região, uma vez que o poder público disponibilizou infraestrutura urbana no local.
No Jardim Romano, por exemplo, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) inaugurou no ano passado um Centro Educacional Unificado (CEU). Na mesma rua Capachós, um conjunto habitacional financiado pela Caixa Econômica Federal também foi inaugurado recentemente. Os investimentos fizeram com que a prefeitura revisasse a planta genérica de valores do logradouro, usado como base para o cálculo do valor venal dos imóveis e do IPTU de 2010. A valorização chega a 187%. Só que, hoje, tanto a escola como a Cohab estão com a entrada bloqueada pelo lodo.
Muitos dos moradores que agora correm o risco de serem removidos da região possuem escritura do imóvel e pagam todos impostos. É o caso do ajudante de cozinha Adriano Clementino Barros, 45 anos, que só consegue sair de casa com um par de galochas de cano longo nos pés. “No dia da enchente, a água ficou até à altura do tornozelo dentro de casa”, comenta. “Passei 12 dias fora de casa, e quando voltei a água já havia baixado. Mas a calçada e a rua continuam nesse estado. Tenho de sair de galocha até para ir na padaria. E qualquer chuvinha faz o lodo entrar na minha casa. Passei o Reveillon com o pé na lama”.
Mesmo nas habitações precárias construídas em ocupações ilegais o poder público mostra-se presente. “Dá uma olhada nessa casa que foi demolida”, aponta o advogado Raimundo dos Anjos Silva, presidente da Associação de Moradores da Vila Aimoré. “Eles só deixaram de pé o poste de luz com marcador da Eletropaulo e o relógio de água da Sabesp. Sabe por quê? Eles ainda vão cobrar a última conta. Se era uma área de risco para a população, qual o sentido de o poder público investir para trazer água encanada, asfalto, escolas, postos de saúde, iluminação pública?”
Em comum, moradores, defensores públicos e promotores exigem que o governo passe a planejar melhor suas intervenções urbanas em vez de buscar soluções imediatistas para problemas tão complexos como a falta de moradia e a degradação ambiental. Até para evitar a repetição de dramas como o do pedreiro que pode se ver obrigado, por dever de ofício, a demolir a própria casa. Ou da família que corre risco de ser despejada pela terceira vez, sem destino certo.
Fonte:CartaCapital
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