Por que as
descortesias de Joaquim Barbosa são festejadas pelos setores mais grotescos do
ambiente social? Pedro Serrano
A etiqueta,
conjunto de regras relativas aos modos de convivência cotidiana, é uma
construção cultural do início da sociedade moderna, conforme ensina o filosofo
político Renato Janine Ribeiro, um dos mais relevantes intelectuais do Brasil
de nossos dias.
A partir do estudo
histórico do fenômeno, o professor da USP aponta duas ideias centrais que
integram o conceito. Como ressalta o filósofo, a humanidade penou para superar
seus modos rústicos e de expressão agressiva e construir um procedimento de
condutas e gestos centrados nos valores da urbanidade e civilidade.
Essa primeira ideia
tem como núcleo o respeito de um pelo outro; reflete a noção de que todos nós,
seres humanos, somos iguais em essência. Por meio do trato educado em relação
ao outro, demonstramos, em pequenos gestos, que por mais valência que tenha
nossa posição social, ela nunca é motivo justificador da arrogância e da
desconsideração do outro.
Tem-se assim
etiqueta como uma “pequena ética” o reconhecimento por gestos e posturas do
outro como ser portador de dignidade humana, não por conta de suas condições
materiais ou de poder, mas pelo simples fato de pertinência a espécie humana.
Neste aspecto não é
nada relevante o conhecimento de regras específicas de conduta, quais talheres
escolher a mesa ou como proceder num serviço a francesa, e sim demonstrar
respeito, preocupar-se com os sentimentos alheios, buscar combater a arrogância
e a prepotência em suas próprias atitudes, com vistas a observância do valor
geral da dignidade como parâmetro das relações humanas, tanto no grande evento
social, histórico ou político, quanto na microfísica do cotidiano.
O ser
verdadeiramente ético não seleciona apenas o olhar público ou os grandes atos
como locus exclusivo da vivencia dos valores que postula.
As regras dos
talheres, do RSVP, dos trajes adequados, em geral e em especial, quando
descoladas dos valores referidos, traduzem a segunda ideia que o professor
Janine Ribeiro postula como inerente ao conceito de etiqueta, qual seja
distinguir entre as classes e segmentos sociais, criar símbolos gestuais de
pertencimento às elites, distinguindo seus integrantes do restante da
comunidade humana. Reflexo, portanto, de valores antagônicos ao da “pequena
ética” da primeira ideia, uma etiqueta aristocrática da desigualdade em
oposição à etiqueta democrática da celebração da dignidade humana.
Em minha atividade
profissional, a das lides nos tribunais, a questão da etiqueta se intensifica.
Por todo meu meio
século de existência ouvi de amigos profissionais de outras áreas de saber, e
mesmo de colegas, críticas incisivas ao modo exageradamente formal de trato
entre os profissionais do direito.
Se em certa
dimensão a critica é correta, por outro lado deixa às vezes de levar em
consideração aspectos específicos da operação com o direito e seus litígios,
que tornam a cortesia mais do que uma saudável e ética regra de convivência,
numa verdadeira exigência de salubridade no exercício profissional.
O profissional do
direito é o único que tem um colega seu pago para descontruir seu trabalho
traduzido em argumentos, seja no disputa entre promotor e advogado na causa,
seja no debate entre julgadores num tribunal (do colegiado democrático se
espera mais a divergência que o consenso).
Nem o médico nem o
historiador nem o filósofo nem o engenheiro passa por isso.
Podem argumentar
que no mundo acadêmico a divergência e o debate são inerências da atividade.
Mas a divergência aí, por mais cotidiana, é decorrência ocasional de enfoques
ou raciocínios diversos, e não um pressuposto.
A divergência e a
oposição no direito não são condições ocasionais, mas sim necessárias, sob pena
de direitos fundamentais da sociedade democrática irem para o ralo.
O Tribunal,
portanto, mais do que qualquer outro lugar social, dever ser o ambiente da
cortesia e do respeito. Arrogâncias e incivilidades devem ser tidas não como
meras deselegâncias mas como comportamentos juridicamente ilícitos, sujeitos a
sanções legais, sob pena de inviabilizar a função republicana da jurisdição,
impedindo a sua realização em padrões minimamente civilizados e éticos.
Infelizmente não é
o que se tem observado nos Tribunais brasileiros. Varias foram as noticias de
agressões, inclusive físicas, entre promotores e advogados em Juris midiáticos.
Mesmo quando a violência física não se faz presente é de estarrecer os
xingamentos e maus modos que vão sendo placidamente aceitos em nossas Cortes.
São mais do que
públicas as deselegâncias do presidente de nossa Corte Suprema com outros
ministros, por apenas divergir de seu entendimento, e também com outros
magistrados, advogados e jornalistas.
Mais do que um
problema em si, a falta de bons modos em nossos tribunais me parece um sintoma
de um mal maior. O Judiciário, dos Poderes da Republica, é o mais infenso às
mudanças democráticas que se realizam no Estado e na sociedade brasileira.
Ninguém gosta de
criticar juiz, advogado ou promotor. O mais honesto entre os homens pode amanhã
se ver envolvido numa acusação injusta ou conflitar com terceiros e depender da
ação desses profissionais para que a injustiça não o prejudique.
Em nossa tradição
aristocrático-patrimonialista de Estado, criticar autoridades e profissionais
tão relevantes pode ser o caminho para o dissabor.
Já o deputado ou o
chefe do executivo dependem do voto e, como tal, são naturalmente mais sujeitos
a crítica, seja pela disputa eleitoral, seja porque não podem se dar ao luxo da
antipatia.
A sujeição à
critica não tem sido suficiente para resolver graves problemas de nossas
esferas estritamente politicas, mas pelo menos suas mazelas são de todos
conhecidas. O mesmo não corre com a chamada “caixa-preta” de nossas
instituições e corporações jurídicas.
A sensação de
impunidade e intangibilidade a criticas mais amplas é tanta que até o despudor
do xingamento público em cadeia nacional é aceito em nossa Corte maior como
ocorrência natural, desmerecedora de reprovação.
O maior problema da
ofensa a um colega em um Tribunal não é o vilipêndio a um companheiro de
profissão, numa perspectiva corporativa, muitas vezes equivocadamente
argumentada. Mas sim a desconsideração da dignidade do colega, a ofensa ao outro em sua condição
humana , sua humilhação pública e perversa.
Pior que isso, a
descortesia tem sido festejada em setores mais grotescos do ambiente social
como prática moralista, a ira combatente do mal.
Confirma minha
impressão de sempre: o sentimento moralista nunca é irmão da ética e da
dignidade. Só gemina com o adubo da hipocrisia.
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