Não vou aqui
repetir declarações do Ministro já muito bem destacadas no artigo “Mensalão
ruim é o dos outros”, de autoria de Rogério Guimarães Oliveira, publicado aqui
no DR. Prefiro então me ater a uma fala em que ele, exemplificando o que
denominou de nossa “cultura da corrupção”, mencionou atitudes corriqueiras no
cenário nacional, tais como “cobrar com nota ou sem nota”, “levar o cachorro
para fazer necessidades na praia”, “fazer combinações ilegítimas nas
licitações”. E destacar sua conclusão de que as instituições públicas são um
reflexo da sociedade: “Não adianta achar que o problema está sempre no outro.
Cada um deveria aproveitar este momento e fazer a sua autocrítica. a sua
própria reflexão pessoal”.
Muitas vezes tenho
mencionado aqui, a título de exemplo desse farisaísmo que anda solto por aí,
diversas outras atitudes que compõem esse nosso cenário “cultural”. É a propina
para o guarda de trânsito, é a sonegação no imposto de renda, é o pistolão para
empregar parente, é a burla na alfândega... São as nossas pessoas físicas ou
jurídicas utilizando-se de firulas
para fraudar o tesouro e buscar o refúgio dos paraísos fiscais. São os nossos
poderes legislativo e judiciário agindo em causa própria e presenteando-se com
benesses que passam longe do cidadão comum.
Não é preciso ser
muito atento aos comportamentos sociais cotidianos para perceber que estamos
muito longe do ideal ético. Nem é necessário estar muito envolvido nos meandros
da política para perceber que há mil exemplos capazes de justificar, com
sobras, as palavras do Ministro a respeito de uma corrupção que, ao contrário
do que se quer fazer crer, não é “privilégio” de um partido político. Na terra
em que se popularizou a “lei de Gerson”, aquela que parte do princípio que o
bom é sempre levar vantagem em tudo, o que vemos são pequenas maracutaias do
cotidiano que acabam tendo como projeção, na política, as grandes negociatas,
fraudes e imoralidades de toda ordem.
Se quisermos ir
mais longe, podemos ir ao tempo das Capitanias Hereditárias, podemos pesquisar
o dia a dia da Colônia (procure ler o Gregório de Matos satírico), os anais do
Império ou os diversos estágios da República (leia as crônicas ferinas de Lima
Barreto). Podemos analisar a criação de Brasília, podemos esmiuçar os grandes
negócios da Ditadura no tempo do “milagre brasileiro”. Sempre haverá , e
fartamente, significativos momentos de denúncias – quase nunca apuradas com
seriedade – de atos que envolviam corruptores e corruptos.
Mas também podemos
nos limitar a tempos mais próximos do presente. Temos em plena atividade um
ex-governador paulista e atual deputado eleito pelo povo, que não pode sair do
país porque pode ser preso lá fora. Ele é do mesmo estado , aliás, que, nos
anos 50, nos deu um governador que tinha como lema a frase “Roubo, mas faço”.
Tivemos a era Collor, que dispensa explicações, logo seguida pelo escândalo dos
“anões do orçamento”, no período de Itamar Franco. Tivemos o caso Lalau. Mais
diretamente ligado aos tempos que
precederam o PT no poder, houve a suposta compra de votos para mudar a
Constituição e permitir a reeleição de um presidente, nunca apurada, mas sempre
mencionada; ocorreu a suposta privataria
tucana, que mereceu um livro de grande vendagem, cujas denúncias vêm passando
em branco e tendem ao esquecimento. Antes do petista (o único que mereceu
status de preocupação nacional), houve o mensalão de Minas, que não é julgado
nunca, Ocorre agora o já apelidado “trensalão” paulista, mas ainda não
averiguamos nem de longe aonde nos levarão (ou levariam) as águas torrenciais
que vêm da cachoeira de Goiás... Precisa mais?
Esse clima de
leniência permanente (e que parece eterna) com as falcatruas se espalha por
outros campos que, contaminados pela corrupção, multiplica por aí posturas
condenáveis nas quais, como sempre, o dinheiro atropela a moral, a ética e a
honradez. E arranha significativamente a cidadania. Coisas de um sistema
político corroído, é certo. Mas, muito mais que isso, coisas de um sistema
econômico calcado na usura dos bancos, no oportunismo dos especuladores, nos
fiéis seguidores do mercado. Coisas do capitalismo do salve-se quem puder e
como puder, mesmo à custa da ética, e que gera, aos borbotões, distorções de
caráter.
Apesar de tudo
isso, não se pode embarcar na canoa furada – e perigosíssima – da
desmoralização da representação política. Posições desse tipo acabam por gerar
os coloridos salvadores da pátria, ou os generais de plantão... O que temos é
que reforçar – reformando – a nossa estrutura política, afastando a nefasto
patrocínio de corporações a candidaturas, tornando mais efetiva a fiscalização
do povo e dando à iniciativa popular o privilégio da decisão, através de
orçamentos participativos e decisões
comunitárias que imponham aos políticos a observância dos desejos daqueles que
eles representam.
O julgamento do
STF, provavelmente, seguirá os rumos originais de um processo de cartas
marcadas que escolheu, e não aleatoriamente, como bode expiatório da “cultura
da corrupção” atávica e endêmica que nos persegue, um segmento partidário da
política nacional que, de forma inédita,
mexeu nas estruturas sociais e tenta saldar uma dívida ancestral com os
mais pobres, massacrados ao longo do tempo por políticos e políticas
oligárquicas, seletivas, elitistas, corporativas, neoliberais (ou qualquer
outro adjetivo que se queira escolher). E, fundamentalmente, corruptas.
Se é verdade, como
disse o Ministro, que nada mudará se não reformarmos o nosso sistema político,
é bom não esquecer que não mudaremos o nosso sistema político se não alterarmos
o culto ao dinheiro, exacerbado por um sistema econômico que nos arruína
enquanto seres humanos.
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação
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