Vocês podem não
acreditar, mas eu já tinha escrito esta coluna quando li o contundente texto do
Urariano sobre os médicos “marcianos”... Vamos a ela.
Millôr Fernandes,
com a ironia que lhe era peculiar, escreveu que, depois de passar horas lendo os
epitáfios de um cemitério, um marciano perguntou para o outro: “Onde será que
eles enterram os canalhas?” Afinal, em um cemitério, os túmulos tendem a
apresentar frases que glorificam os falecidos, carregados de elogios saudosos e virtudes hiperbólicas. Em um cemitério, pelo
menos na aparência, não há lugar para os malvados, os perversos, os bandidos.
Parece que esses
dois marcianos retornaram ao planeta de origem com uma ideia nada salutar a
respeito da nossa intrínseca honestidade, cônscios da nossa hipocrisia. Talvez
por isso tenham sido convidados pelos terráqueos a voltar ao nosso planeta
para, quem sabe, alterar as impressões depreciativas da primeira viagem. Uma
segunda chance.
Convite feito,
convite aceito. E, para evitar surpresas desagradáveis, os da Terra combinaram
com os de Marte que o objeto de análise, dessa vez, seria o país tido e havido
como líder do mundo democrático dos humanos. Assim, não haveria equívocos e o
nosso prestígio seria restabelecido. Os homens da Terra seriam iguais aos de
Marte.
O que se segue
reproduz trecho de diálogo travado entre
um dos marcianos, o mais inquiridor, e
um assessor da nação-modelo, especialmente designado pelas autoridades, um PHD
das relações interplanetárias, especialista em argumentação paradoxal, capaz de prestar todos os esclarecimentos aos
curiosos visitantes:
MARCIANO: - Em nossa terra de origem, a igualdade é
geral. Não conhecemos discriminação nem preconceito. Aqui também é assim?
ASSESSOR: - Sem dúvida! Somos a nação da liberdade, o
país da luta incessante pelos direitos humanos.
MARCIANO: - Mas... e esta notícia aqui, que menciona a
absolvição de um homem branco que matou a tiros um jovem negro desarmado? Não é
uma prova de que a discriminação ainda é forte entre vocês?
ASSESSOR: - Claro que não. O nosso presidente até disse
que podia ter sido ele a vítima... Esse é um argumento definitivo para a não
existência do preconceito entre nós. Até o presidente poderia ter sido morto...
MARCIANO: - Bom, se é assim... Mudando um pouquinho de
assunto, mas ainda dentro do tema. Os direitos humanos... Eles são efetivamente
respeitados aqui? Não há problemas nessa área?
ASSESSOR: - Orgulhamo-nos de ser a nação que não apenas
pratica internamente, mas assegura esses
direitos no mundo inteiro. Essa é uma das nossas marcas.
MARCIANO: - Então é falsa a existência, em uma ilha
vizinha, contra a vontade de seus habitantes, de um complexo penitenciário que
mantém presos centenas de homens sem julgamento, sujeitos à tortura e coisas do
gênero?
ASSESSOR: - Ah! Isso é diferente... São feras humanas,
bandidos planetários, terroristas perversos, um perigo para a Humanidade.
MARCIANO: - Mas... por que não são julgados e condenados,
conforme fazemos em nosso planeta?
ASSESSOR: - Ah!
Isso é porque não foram acusados de nada, objetivamente. Como julgá-los!?
MARCIANO: - É...Faz sentido... Se não fosse essa
explicação tão clara, a gente poderia pensar que não se respeitam as liberdades
e os direitos individuais.
ASSESSOR: - Sim, mas descanse... Nós estamos sempre
atentos a isso. A individualidade e seus direitos são sagrados para nós...
MARCIANO: - Então não é verdadeira a notícia de uma
espionagem planetária a contas de e-mails nacionais e estrangeiros? E não
existe perseguição a quem a denunciou?
ASSESSOR: - Não sei o que disseram a vocês. Na realidade,
o que existe é uma defesa dos cidadãos do mundo. Queremos evitar o terrorismo ,
aqui e fora daqui. O que você chama de espionagem é informação... Somos os melhores
nisso também !
MARCIANO: - Percebo... Então vocês acham que o homem
que revelou o procedimento de invasão da privacidade das pessoas é um mal intencionado, um terrorista disfarçado, um
ser contrário à democracia, um inimigo da cidadania?
ASSESSOR: - Perfeito ! Você tirou as palavras da minha
boca...
MARCIANO: - Sei...Assim como vocês querem tirar do ar
algumas bocas que dizem certas palavras...
ASSESSOR: - São os ônus da liberdade. “O preço da
liberdade é a eterna vigilância”!
MARCIANO: - E quanto aos meios? Vale inventar armas
mortíferas que não existem? Vale matar gente inocente com aviões não pilotados?
Vale patrocinar ditaduras sanguinárias com dinheiro fornecido aos seus
exércitos?
ASSESSOR: - Bom...são muitas perguntas... Mas, pela
ordem: as armas mortíferas existiam, mas sumiram... Devem estar afundadas nos
campos de petróleo que conquistamos para a Humanidade... Quanto à gente
inocente que morre, é perfeitamente
explicável: estavam no lugar errado, na hora errada, são os azarados da
guerra... Já o dinheiro que damos para
os exércitos ditatoriais, ele é usado para a compra de armas que nós
vendemos; logo, o dinheiro volta para
nós, não fica lá... Ou não?
MARCIANO: É, volta
mesmo... E como...
O diálogo prosseguiu nesse tom. Parece que, ao
voltar para o planeta vermelho, o tal
marciano inquiridor – quase convencido que os homens não são nada de
Marte - perguntou para o outro: “Onde será que eles escondem os cidadãos democratas?”
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação
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