Como interpretar a
confissão da Globo?
Admitir que foi
errado apoiar o golpe foi provavelmente uma ação de marketing — destinada ao
fracasso.
Se a Globo
confessar todos os pecados, o confessionário ficará ocupado por muitos anos.
Mas é de uma
confissão específica que vamos tratar: o apoio ao golpe de 1964. A confissão,
expressa numa nota publicada ontem, teve ampla repercussão, como era de
esperar.
A questão mais
intrigante, para mim, é: o que a Globo pretendeu com isso? A única hipótese
lógica que encontro é que ela quis fazer uma ação de marketing que limpe uma
marca – ela própria – que, como os protestos de agora mais uma vez mostraram,
sofre uma colossal rejeição dos brasileiros.
São remotas,
remotíssimas na verdade, as chances de que isso melhore o drama da má reputação
da Globo.
Primeiro porque o
raciocínio usado no texto é manipulador. Palavras de Roberto Marinho, nos vinte
anos do golpe, são evocadas para afirmar uma lorota histórica que eu imaginava
que ninguém mais usaria, conhecidos os fatos reais: a de que foi o povo que
exigiu a deposição de João Goulart.
Disse Roberto
Marinho: "Os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o marechal Costa
e Silva, 'por exigência inelutável do povo brasileiro'. Sem povo, não haveria
revolução, mas apenas um 'pronunciamento' ou 'golpe', com o qual não estaríamos
solidários."
Pobre povo
brasileiro: além de ser objeto de uma predação econômica selvagem que
transformaria o Brasil no campeão mundial de desigualdade social, ainda é
responsabilizado por isso.
Não foi a CIA, não
foi a direita, não foram generais reacionários, não foram barões da mídia como
Roberto Marinho que deram o golpe do qual seriam grandes beneficiários. Foi o
povo, vítima número 1 da quartelada.
Por esse ângulo,
para voltarmos à confissão do Globo, Roberto Marinho estava, portanto, ao lado
do povo, como um Zorro ou um Robin Hood.
Nas reflexões de RM
rememoradas na confissão, são destacados "os avanços econômicos obtidos
naqueles vinte anos".
Avanço para quem?
Para ele,
certamente. Os militares lhe deram uma televisão que transformou a Globo de
dona de um jornal de segunda categoria numa grande corporação.
Basicamente, foi
uma troca: Marinho levou a tevê e, em troca, garantiu apoio à ditadura. No
livro Dossiê Geisel, escrito à base de documentos pessoais de Geisel, essa
troca aparece com clareza. Roberto Marinho não fazia nenhuma cerimônia em pedir
mais e mais favores à ditadura lembrando o apoio que dava a ela.
Para o
"povo", o golpe foi uma tragédia econômica. Os trabalhadores perderam
direitos trabalhistas como a estabilidade, e foram proibidos – não raro a balas
— de fazer greve para se defender na relação desigual com as empresas.
Disso resultou uma
brutal concentração de renda. A fatia do bolo nacional do povo foi minguando,
enquanto homens como Roberto Marinho acumulavam uma fortuna pessoal que os
levaria, ou a seus herdeiros, às listas de bilionários feitas pela respeitada
revista americana Forbes.
A falácia empregada
na época, uma criação do homem forte da economia, Delfim Netto, era que o bolo
tinha antes que crescer para depois ser distribuído.
Impedidos de
responder com greves, os trabalhadores tinham, para usar a grande expressão de
Noam Chomsky, a "liberdade de consentir" naquela tese desonesta, cínica
e responsável pela favelização do Brasil.
Se realmente quiser
melhorar sua imagem, a Globo terá mais sucesso com ações concretas.
Uma delas, que
poderia ser a primeira, é pagar o que deve à Receita Federal depois de ter sido
flagrada numa fraude fiscal na compra dos direitos da Copa de 2002.
O problema é que,
para isso, não bastam palavras. É preciso colocar dinheiro: 1 bilhão de reais
em valores atuais.
E quem acredita que a Globo
põe a mão no bolso, mesmo em situações escandalosamente claras como aquela,
acredita em tudo, como disse Wellington.
Fonte:DCM
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