Luiz Flávio Gomes
Particularmente,
apesar de todos os argumentos contrários, discordo do ministro Barbosa e
entendo que os embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande)
Na seção desta
quinta-feira 5 o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de embargos
infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência originária (casos
julgados originariamente em razão do foro por prerrogativa de função). Fomos honrados,
Valério Mazzuoli e eu, com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do
duplo grau de jurisdição (aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo
min. Celso de Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa). Duas
observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos os argumentos
contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os embargos infringentes são
cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande); (b) Valério Mazzuoli e eu
afirmávamos na terceira edição do nosso livro Comentários à CADH (RT) que o
sistema europeu (europeu!) não admite o duplo grau de jurisdição quando o caso
é julgado pela máxima corte do país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos:
(a) Por que entendo
cabíveis os embargos infringentes?
De acordo com a
minha opinião, não há dúvida que tais embargos (infringentes) são cabíveis.
Dois são os fundamentos (consoante meu ponto de vista): (a) com os embargos
infringentes cumpre-se o duplo grau de jurisdição garantido tanto pela
Convenção Americana dos Direitos Humanos (art. 8º, 2, "h") bem como
pela jurisprudência da Corte Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe
séria controvérsia sobre se tais embargos foram ou não revogados pela Lei
8.038/90. Sempre que não exista consenso sobre a revogação ou não de um
direito, cabe interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao
réu, que tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito.
Haveria um terceiro
argumento para a admissão dos embargos infringentes? Sim. A esses dois fundamentos
cabe ainda agregar um terceiro: vedação de retrocesso. Se de 1988 (data da
Constituição) até 1990 (data da lei 8.038) existiu, sem questionamento, o
recurso dos embargos infringentes (art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova
lei, ainda que fosse explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu), não
poderia ter valor, porque implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do
condenado. De se observar que tais embargos, no caso de condenação originária
no STF, cumprem o papel do duplo grau de jurisdição, assegurado pelo sistema
interamericano de direitos humanos.
Pelos três
fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o Min. Joaquim Barbosa
(que já rejeitou os embargos infringentes de Delúbio) não está na companhia do
melhor direito. O tema vai passar pelo Plenário, provavelmente na próxima seção
(de 12/9/13). A controvérsia será imensa (ao que tudo indica).
(b) Cabimento do
duplo grau de jurisdição
Dentro de poucos
dias sairá a 4ª edição do nosso livro Comentários à CADH (RT). Nela, sobre o
cabimento do duplo grau de jurisdição no sistema interamericano de direitos
humanos, esclarecemos (Valério Mazzuoli e eu) o seguinte:
"As duas
exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos
órgãos jurisdicionais europeus [europeus!], são as seguintes: (a) caso de
condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b)
condenação imposta pelo tribunal máximo do país. ( ) Mas a sistemática do
direito e da jurisprudência interamericana é distinta [agregamos essa parte na
4ª edição, porque agora sabemos o que pensa a CIDH]. Diferentemente do que se
passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o
respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que
se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no
sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição".
"A Corte
Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há
hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal.
Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa. Pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos
internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos".
"De forma direta
a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro
sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão), porém, de
forma indireta sim. No famoso "caso mensalão" o tema foi amplamente
discutido. Pediu-se, no princípio do julgamento, a separação dos processos em
relação aos réus que não contavam com foro especial por prerrogativa de função.
Por maioria e contrariando sua própria jurisprudência, deliberou o STF não
separar os processos. Todos foram julgados em instância única (no STF). E agora
vão questionar essa decisão no sistema interamericano, com grande chance de
sucesso. Por quê?"
"Porque não é
verdade que Corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF
ou que as sanções da Corte seriam basicamente indenizatórias. Nada mais
equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas, que revelam
formação jurídica eminentemente legalista".
"No caso
Barreto Leiva contra Venezuela a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou
duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o
direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de
forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale
para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em
razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem
desfruta dessa prerrogativa".
"Esse
precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do
mensalão. Mais detalhadamente, o que a Corte decidiu foi o seguinte":
"Se o interessado requerer, o Estado (Venezuela no caso) deve conceder o
direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade. No
segundo julgamento, caso se verifique que o anterior foi adequado ao Direito,
nada há a determinar. Se decidir que o réu é inocente ou que a sentença não
está adequada ao Direito, disporá sobre as medidas de reparação em favor do
réu."
"A obrigação
de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte
Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder
Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado,
também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de
forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de
réu com foro especial por prerrogativa de função".
"A parte mais
enfática da decisão foi a seguinte: "A Corte, tendo em conta que a
reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional
requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum),
que consiste no restabelecimento da situação anterior, decide ordenar ao Estado
que brinde o senhor Barreto Leiva com a possibilidade de recorrer da sentença
citada".
"No que diz
respeito à reparação dos danos, uma distinção fundamental é a seguinte: uma
coisa é a reparação de um dano decorrente da violação de um direito humano que
não pode ser restituído à situação anterior (no caso Ximenes Lopes, por
exemplo, reclamava-se da sua morte por culpa do SUS). Aqui só resta pagar
indenização e investigar os abusos. Situação bem diversa é a violação de uma
garantia processual, como é o caso do duplo grau de jurisdição, que ainda pode
ser cumprida pelo país. Se a reparação pode ser integral, é ela que deve ser
imposta e respeitada pelo Estado".
"Ainda ficou
dito que a Corte iria fiscalizar o cumprimento da sua sentença e que o país
condenado deve cumprir seus deveres de acordo com a Convenção Americana".
"O julgamento
do STF, com veemência, para além de revelar a total independência dos seus
membros, reafirmou valores republicanos de primeira grandeza, tais como
reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos
políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de
campanhas eleitorais etc. O valor histórico e moralizador dessa sentença é
inigualável".
"Mas do ponto
de vista procedimental e do respeito às regras do jogo do Estado de Direito, o
provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo
especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis. Por vícios
procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes,
autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais
histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu
brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado".
"De outro
lado, quando o julgamento acontece na Corte Máxima, a única interpretação
possível do art. 8º, II, "h", da CADH, é que este mesmo tribunal é o
competente para o segundo julgamento. Foi isso que determinou a CIDH no caso
Barreto Leiva. Quando não existe outro juiz ou Corte "superior", é a
mesma Corte máxima que deve proceder ao segundo julgamento porque, no âmbito
criminal, nenhum réu jamais pode ser tolhido desse segundo julgamento
(consoante a firme e incisiva jurisprudência da CIDH)".
Luiz Flávio Gomes
Luiz Flávio Gomes é jurista, professor, fundador da Rede de Ensino LFG, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br
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