Na dosimetria, fase
de definição das penas, o Supremo adotou um sistema faccioso de deliberação
O céu abriu um
pouco, define um assistente de um dos onze ministros do STF, no final da sessão
de ontem.
Ele se referia ao
voto de Teori Zavaski, o ministro que interrompeu o debate para questionar o
ponto mais frágil das condenações produzidas pela Ação Penal 470 – as penas de
quem foi condenado por formação de quadrilha, que atinge vários réus, entre
José Dirceu e José Genoíno.
No percurso
labiríntico que as discussões do STF costumam tomar, vez por outra, a decisão
de Zavaski pode vir a ter um alcance muito maior do que parece.
Zavaski anunciou
que mudava seu voto, para concordar com a minoria que, em deliberações nos dias
anteriores, questionou a condenação por quadrilha.
O ministro não
anunciou exatamente o que irá fazer.
Se, por exemplo,
enquadrar Dirceu na pena mínima, e for acompanhado por outros ministros nessa
decisão, o principal troféu político do julgamento e outros réus poderão deixar
o regime fechado e cumprir pena em semi-aberto.
Não se sabe, ainda,
qual o poder real de influência do voto de Zavaski no STF. Se, a partir dos
debates que devem ocorrer a partir de hoje, ele for seguido por outros dois
ministros, haverá uma maioria a favor da revisão das condenações por formação
de quadrilha.
Mesmo que os réus
não venham a ser absolvidos desse crime, o que seria o justo, em minha opinião,
teriam a pena reduzida, o que seria um dano menor.
Mas também pode não
acontecer e o voto revisto de Zavaski se revelar um ponto fora da curva.
Em qualquer caso, o
voto de Zavaski trouxe à luz o impasse de fundo em que se encontrava o debate
sobre embargos de declaração no STF.
Até então, em
várias oportunidades, ministros até admitiam que haviam descoberto um erro em
determinadas sentenças.
Mas se recusavam a
fazer a correção necessária em função de um argumento formal, de que os
“embargos de declaração” não eram o momento adequado para tanto.
Com um argumento
diverso, o ministro Luiz Roberto Barroso chegou a dizer que concordava com
Ricardo Lewandovski no pedido de revisão da pena do Bispo Rodrigues mas, recém
chegado ao STF, não se considerava no direito de refazer o julgamento.
O próprio Zavaski
assumiu uma conclusão idêntica, neste e em outros casos, embora empregasse
teses diferentes.
O debate de ontem
foi iniciado por um voto do ministro Luiz Roberto Barroso e foi a partir dali
que surgiu a novidade que permitiu a Zavaski reabrir o debate sobre formação de
quadrilha.
Barroso propôs a
redução a pena de um dos condenados. Tratando de um cidadão que não desperta as
mesmas paixões e até preconceitos típicos da ação penal 470, pois vem a ser um
doleiro do Rio de Janeiro, ligado ao PP, o mais conservador da frente de
aliados do governo Lula, Barroso apontou para um caso flagrante de injustiça:
penas diferentes para cidadãos condenados por crimes iguais, a partir de
responsabilidades idênticas na mesma empresa.
As ponderações de
Barroso ganharam força no plenário, conquistando a maioria. Assim, pela
primeira vez, desde que o debate sobre embargo de declaração teve início, o STF
admitiu e corrigiu um erro.
A intervenção de
Zavaski sobre formação de quadrilha ocorreu nessa situação. Até então, mesmo
aceitando as ponderações de Barros, ele ficou contra a ideia de reduzir penas.
Mesmo assim, admitiu que, quando ocorre um “erro de julgamento,” enfrenta-se
uma questão que deve ser resolvida de uma forma ou de outra. “Ou se beneficiou
(um réu). Ou se prejudicou.”
Ao constatar,
contudo, que a maioria havia assumido outro entendimento, foi além dos colegas
e mudou um voto anterior. Considerou que era possível caminhar em outra direção
e aí foi para uma questão mais relevante, da condenação por formação de
quadrilha.
É sintomático que
essa discussão tenha sido provocada, em dois momentos, pelos dois novos
integrantes do STF, nomeados depois que a primeira fase do julgamento havia
sido encerrada.
Há um motivo. Eles
ficaram de fora de uma das situações mais estranhas do julgamento da ação penal
470.
Na dosimetria, fase
de definição das penas – que é o debate essencial dos recursos – o STF adotou
um sistema faccioso de deliberação, no ano passado. Decidiu, por maioria, que apenas
os juízes que haviam condenado um réu teriam direito a definir o tamanho de sua
pena. Com isso, ocorreu aquilo que se poderia imaginar.
Ao serem debatidas
apenas por ministros convencidos da culpa de cada acusado, as penas se tornaram
artificialmente altas, sem refletir a visão de conjunto de STF. Para
compreender o que aconteceu, basta imaginar, por hipótese, o caso de um réu
condenado por seis votos a cinco.
Se todos os juízes
participam do debate de sua pena, mesmo aqueles convencidos de sua inocência,
sua condenação será mantida, mas o resultado será seguramente mais equilibrado,
mais próximo do que seria uma opinião do conjunto dos juízes sobre um caso.
(Não custa recordar
que o STF é um conjunto único, e não uma soma de indivíduos e suas sentenças.
Por isso os ministros se reúnem e debatem em vez de enviar votos e deliberar
pela internet).
Quando se recorda
que o direito de definir as penas é, no fim das contas, a expressão concreta do
Direito e da Justiça, o ponto final que concentra os direitos dos réus, os
deveres dos juízes e, é claro, os honorários dos advogados, pode-se ter uma
ideia da distorção produzida.
Num debate fechado
entre os já convencidos, ocorre aquilo que se vê num centro acadêmico
estudantil, numa assembleia de acionistas de empresa e, data vênia, num
encontro de juízes e suas togas negras. Temos a opinião de apenas um grupo
demarcado, o que favorece uma deliberação com um viés pré-definido.
Mesmo condenados,
os réus enquadrados por formação de quadrilha tiveram quatro votos contra cinco
a favor de sua inocência. Se esse quadro equilibrado tivesse sido transferido
para o debate sobre penas, os réus teriam mais chances de receberem sentenças
que refletiam a visão do conjunto do STF sobre sua culpa. Quem se recorda dos
debates da dosimetria, dificilmente terá esquecido a impressão de que
determinadas penas foram agravadas não porque fossem as mais adequadas, mas
porque se temia que penas leves pudessem favorecer a prescrição quando se
pretendia garantir de qualquer maneira que os réus fossem para a cadeia.
"Reafirmo que
não temos semideuses no Supremo", disse Marco Aurélio Mello, ao apoiar
Luiz Roberto Barroso. Falando de penas diferentes para crimes identicos,
apontou para "uma contradição que salta aos olhos e que precisa ser
corrigida."
Não se sabe até
onde irá este debate. O Supremo enfrenta pressões de outro lado. O ministério
público voltou a falar que irá pedir a prisão dos condenados, como se isso
fosse possível sem que o Supremo revogasse várias etapas na fase final do
julgamento, que até hoje fazem parte da jurisprudência da casa. Estamos falando
da publicação dos acórdãos a respeito dos embargos de declaração, que têm prazo
de 60 dias para serem elaborados, e do direito dos condenados apresentarem um
novo embargo de declaração a partir dos acórdãos. Há, também, o debate sobre
embargos infringentes, onde 12 condenados com quatro votos dissidentes têm o
direito – reconhecido até 2007 por Joaquim Barbosa – de pedir a revisão de seu
julgamento.
É neste debate que
será possível descobrir o que aconteceu ontem.
Paulo Moreira Leite
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