Emir Sader
Conveniência, sim.
Para tentar romper o isolamento, a desmoralização, a falta de credibilidade, a
crise econômica, a perda acelerada de audiência
O editorial do
Globo começa mentindo: não foi um “apoio editorial”. O jornal, junto com os
outros que ele cita – quase toda a mídia da época, que quase toda ainda anda
por aí –, participou do bloco golpista que criou o clima favorável ao golpe,
promoveu as “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”, que funcionavam
para tentar passar a ideia de que a população pedia um golpe militar.
Apoiou o golpe,
buscou sua legitimidade e apoiou a ditadura militar ao longo de toda sua
existência. E seguiu justificando-a até agora.
Não apoiou apenas o
golpe. Apoiou tudo o que ditadura fez de ignominioso: desde todas as formas de
repressão – prisões arbitrárias, torturas, execuções, condenações sem provas,
etc. etc. Apoiou a política de superexploração dos trabalhadores com o arrocho
salarial, que permitiu a recuperação da economia, com um modelo de
favorecimento dos ricos e dos capitais estrangeiros, em detrimento da massa da
população e das pequenas e médias empresas nacionais.
Apoiou inclusive o
famigerado AI-5, que terminou de liquidar com os pequenos espaços de oposição
ainda existentes. Saudou o golpe, a ditadura, a repressão, a liquidação da
democracia, tudo em nome da “democracia”, que ressurgiria.
Se opôs à
democratização do país, às eleições diretas, ao direito de o povo brasileiro
escolher seu presidente pelo voto universal, foi favorável à auto-anistia –
vigente até hoje – imposta pelos militares.
Se projetou como a
porta-voz oficial da ditadura, se enriqueceu com as vantagens que a ditadura
lhe propiciou e que são responsáveis, até hoje, pelos privilégios que a Globo
tem.
Se poderia listar
muito mais monstruosidades que a Globo apoiou e de que participou ativamente.
Não foi um “mau momento”, um “equívoco” de avaliação no “apoio editorial” a uma
circunstância concreta.
Foi uma posição
firme e forte a favor da ditadura e contra a democracia, a favor das elites e
dos interesses estrangeiros, e contra o povo e o Brasil.
Por que agora esse
“arrependimento”? Não foi arrependimento, senão não teria o cinismo de tentar
restringir o erro a um “apoio editorial”. Teria feito autocrítica da
participação ativa no mais hediondo regime que o Brasil já teve.
Em parte, como
confessam, é “vergonha”, porque pessoas jogam na cara deles ter participado do
golpe e da ditadura. Tentam se limpar disso, dar álibis aos que colaboram com
seus órgãos de imprensa, de que “fizeram autocrítica”.
Que chega a poucos
meses de se completar 50 anos do golpe e do início da ditadura. Por que não o
fizeram durante a ditadura? Por que não o fizeram no começo da democratização?
Por que não o fizeram em outro momento?
Porque estão
cansados de ser derrotados, de ser execrados, de ter manifestações diante das
suas sedes, de ter seus jornalistas repudiados pelas manifestações dos jovens,
de saber que está consagrado “O povo não é bobo / Abaixo a Rede Globo”, porque
sabem que não tem credibilidade alguma. Que seus principais jornalistas são
vítimas das chacotas e do ridículo.
É como se, nos anos
1980, fizessem autocrítica de terem sido contra a chegada do Getúlio ao poder,
de terem se oposto sempre a seus governos e de terem promovido golpes contra o
maior estadista brasileiro do século passado – autocrítica ainda pendente.
O editorial
expressa conveniência de uma nova reconversão da empresa – em crise econômica,
de audiência e com credibilidade zero. Não por acaso, ao mesmo tempo, os filhos
do fundador foram visitar o Lula, depois de tripudiar contra ele durante mais
de 10 anos.
Tirarão
consequências do editorial? Mudarão radicalmente a orientação e a plana maior
que da continuidade ao apoio e participação no golpe e na ditadura, ou seguirão
como tem sido nestes 50 anos?
É por conveniência,
envergonhada, sem convencimento algum, que a Globo faz como se fosse emendar
rumos a partir do editorial. Quer limpar sua imagem diante de uma opinião
pública que despreza o que o jornal fiz e opina.
Se dão conta que se
desviaram ainda mais do Brasil real quando, depois de apoiarem os governos
fracassados de Sarney, Collor e FHC, se opõem frontalmente aos governos que o
povo brasileiro mais apoiou e apoia e que deve reeleger de novo. Se dão conta
que não elegem presidente da república há mais de 10 anos e que correm o serio
risco de seguir assim por pelo menos toda uma segunda década. Percebem que nem
sequer no Rio de Janeiro, sua sede, não conseguem eleger governador, senador,
prefeito há muito tempo, e devem seguir assim.
Arrependimento,
não. Senão mudariam radicalmente sua linha editorial e informativa. Vergonha,
não. Senão mudariam as equipes que os fazem passar vergonha. Conveniência, sim.
Para tentar romper o isolamento, a desmoralização, a falta de credibilidade, a
crise econômica, a perda acelerada de audiência.
Mas nunca
conseguirão apagar o papel que tiveram e seguem tendo. “O povo não é bobo /
Abaixo a Rede Globo” – seguirá ecoando por todo o país que conseguiu, contra a
Globo, derrotar a ditadura, derrotar seus presidentes e consagrar os
presidentes que expressam a construção de um país democrático, solidário e
soberano, contra todos os que apoiaram o golpe, a ditadura e os governos
antipopulares.
Fonte:Carta Maior
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